Meninas e meninos, eu li “A Morte em Veneza”, de Thomas Mann, e fui acometido pela Síndrome de Stendhal. Suores, tremedeira, palpitações, tonturas, mas também euforia e “sensações celestiais”. Esses sintomas contraditórios foram descritos pelo escritor francês Henri-Marie Beyle, conhecido como Stendhal, autor do clássico “O Vermelho e o Negro”, ao relatar o que sentiu diante dos afrescos de Giotto na Basílica de Santa Croce, em Florença.
A obra-prima de Thomas Mann, um dos mais perfeitos exemplares do gênero novela da literatura universal, segue sendo bastante lida e não raramente é mal ou superficialmente interpretada. Essa tragédia protagonizada pelo discreto e respeitável escritor de meia idade Gustav Von Aschenbach, que chega a Veneza por recomendações médicas e acaba mortalmente encantado pela beleza perturbadora de um adolescente polonês chamado Tadzio, possui muitas camadas de interpretação. Para uns trata-se de uma explícita apologia à pederastia. Outros consideram um alerta sobre os perigos da luxuria em contraste com a ordenadora moralidade burguesa. Não falta quem enxergue a novela como uma parábola cristã sobre a tentação demoníaca. Os mais simplórios acham que é apenas uma narrativa exageradamente floreada sobre um velho safado perseguindo um novinho exibido. O fato é que essas interpretações são básicas demais. Não precisaria de um Thomas Mann para escrever “A Morte em Veneza” se fosse apenas isso.
Interpreto “A Morte em Veneza” como um tratado narrativo sobre o poder devastador da beleza sob pessoas esteticamente sensíveis. Apesar da Síndrome de Stendhal só ter sido registrada na literatura médica pela psiquiatra italiana Graziella Magherini em 1979, muito provavelmente, Thomas Mann conhecia o texto original de Stendhal. Ao longo dos séculos podem ser contados aos milhares relatos de pessoas fisicamente impactadas diante de “grande beleza”. Em Florença, em Veneza, em Paris, em Roma, em Barcelona, em Portugal e em muitos outros lugares; dentro de museus, em salas de concerto, diante de majestosas arquiteturas ou mesmo na solidão de seus lares, com livros nas mãos. Não se preocupem, não é contagioso. Bom seria se fosse. Talvez o mundo tivesse alguma chance contra a barbárie.
Talvez inconscientemente, Thomas Mann fez de Gustav Von Aschenbach uma vítima da Síndrome de Stendhal em estágio extremo. Tragicamente, o objeto de seu encanto não foi um poema, nem uma pintura, música ou escultura, mas um ser humano. O fato de o protagonista do livro ser um artista, por definição alguém que possui como profissão a busca e a produção da beleza, somente potencializou sua vulnerabilidade. Detalhe que explica, mas não justifica sua fraqueza.
Impactado pela “grande beleza”, Gustav Von Aschenbach não resistiu ao canto da sereia e sucumbiu. A cólera, doença que oficialmente o matou, não foi mais fatal do que a perda de sua identidade. Caído morto na praia, pateticamente maquiado de dândi, o até então discreto e respeitável escritor pagou o preço por olhar para o abismo e o abismo olhar de volta. “Que lindos olhos!”, deve ter pensado Von Aschenbach.
Livro: A Morte em Veneza / Tônio Kröeger
Autor: Thomas Mann
Tradução: Herbert Caro e Mário Luiz Frungillo
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 170
Nota: 10 /10