Bula de Livro: Eisejuaz, de Sara Gallardo

Bula de Livro: Eisejuaz, de Sara Gallardo

Li “Eisejuaz”, de Sara Gallardo, e gostei. Na verdade, gostei demais. Uma frase, terrível e marcante, define esse livro: “Um animal demasiado solitário devora a si mesmo”. Essa síntese melancólica resume a jornada de Eisejuaz, um índio do povo tribo Wichí, cujos nomes são muitos: água que corre, homem grande, o mais forte de todos… Vive entre dois mundos. Foi cristianizado por uma missão de noruegueses, virou Lisandro Veja, mas não deixou sua crença raiz e lida com as duas, enquanto acredita ter recebido do Senhor uma missão: cuidar de um europeu arrogante e insensível, o Paqui. Eisejuaz aprendeu o espanhol com os missionários, o que culminou numa fala particular, curiosa, explorada por Sara Gallardo e reavaliada pela tradutora Mariana Sanchez, com muita competência. Eisejuaz se expressa em uma linguagem que vai do caipira ao culto, o que o torna, em muitos momentos, inverossímil. Por exemplo, da fala peculiar, temos: “E nada não aconteceu”. Por outro lado, Eisejuaz, também constrói frases bem trabalhadas e, profundamente, coerentes na língua que aprendeu. Talvez seja essa a intenção da autora: também, por meio da fala, posicioná-lo no limite de dois mundos.

Eisejuaz
Eisejuaz, de Sara Gallardo (Relicário, 230 páginas)

A mais bela passagem de “Eisejuaz” está, exatamente, no seu canto às criaturas selvagens e sua adoração aos elementos do xamanismo, que reluta em abandonar, mesmo tendo sido batizado e criticado pela sua cultura, supostamente, anticristã (“demoníaca”). Eisejuaz, em sua conjuração, ergue os braços e diz: “Anjo da anta, faça-me forte com a força do forte. Anjo do xuri, deixe-me correr e esquivar, e dê-me a paciência do macho que cuida da cria. Anjo do sapo cururu, dê-me coração frio (…) Digam-me. Venham aqui. Acendam seus fogos aqui. Façam suas casas aqui, no coração de Eisejuaz, anjos mensageiros do Senhor”.

Eisejuaz perdeu tudo que tinha, a esposa que amava, vítima de um tormento avassalador, o emprego, a dignidade, a saúde, foi expulso da missão. É um pária. Teve uma visão do Senhor e espera. Eisejuaz parece um Zaratustra às avessas. Depois de ser chefe, líder de homens e conhecedor de maldições, torna-se o cuidador de um homem doente, que encontra caído na lama e, pela ordem do Senhor, o ajuda, retorna à natureza e a vida selvagem. Eisejuaz se encontra e torna-se forte em seu isolamento. Consegue seu sustento por meio da caça e da interação com as criaturas do mundo afastado. Cria um macaco e um papagaio. Faz amizade com um cão que se torna seu parceiro na caça e se alimenta dos animais que, juntos, eles capturam usando arco e flecha. Luta com Paqui. Não se entendem, mas um tem que aprender com o outro. “Assim como um bem me vem de você, um bem tem que te chegar de mim.”

“Eisejuaz” é um estudo. A explicação sobre um povo, sem discursos óbvios ou comiseração. Segundo Alexandre Nodari, “Eisejuaz não é um romance argentino. ‘Eisejuaz’ é um discurso indígena que (res)soa ‘como ouvir a voz dos antigos profetas’”. Ele está certo!


Livro: Eisejuaz
Autor: Sara Gallardo
Tradução: Mariana Sanchez
Páginas: 240 páginas
Editora: Relicário
Nota: 9/10

Solemar Oliveira

Doutor em Física, professor universitário e pesquisador com trabalhos publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Também atua como prosador, poeta, crítico e ensaísta. Autor dos romances “Desconstruindo Sofia” e “A Confraria dos Homens Invisíveis”, além do livro de contos “A Breve Segunda Vida de uma Ideia”, destacado entre os melhores de 2022. Seu livro “As Casas do Sul e do Norte”, publicado pela editora da Revista Bula, recebeu o prêmio Hugo de Carvalho Ramos, uma das mais tradicionais láureas literárias do Brasil.