Brás Cubas, Bentinho, Cristiano Palha, Conselheiro Aires. Para quem não conhece ou não se lembra, eles são personagens da chamada “segunda fase” da ficção de Machado de Assis, iniciada com as “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881). Foi algo como um estalo: os livros machadianos passaram, de repente, a ser narrados em primeira pessoa, de forma desabusada, sarcástica, nada confiável e livre. Figuras para fazer alegorias e ironizar a situação da época. Resultado: tais narrativas apontaram para o modernismo literário do século 20 e trouxeram uma visão nova sobre o Brasil.
O salto criativo foi notável, em relação à “primeira fase” de Machado. Nesta, o foco eram romances realistas mais convencionais: “A Mão e a Luva” (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1878). Os primeiros livros do autor buscaram a forma do narrador em terceira pessoa, no espírito romântico, para tratar de mulheres mergulhadas numa sociedade cuja única saída era se defender no paternalismo.
As personagens Guiomar, Helena e Estela driblavam os obstáculos de um país que tinha uma herança colonial e a escravidão como a estrutura de organização da vida. Um passo à frente de José de Alencar, certamente, mas sem o avanço da segunda fase machadiana.
A novidade de Machado a partir dos anos 1880 é a forma literária. Uma escrita ficcional em primeira pessoa que vai contra os padrões do romance realista e, de quebra, expõe o lado perverso dos personagens masculinos no Brasil. O leitor foi chamado a desconfiar dos narradores — eis a descoberta de Machado de Assis.
Senhores respeitáveis no Império aparecem de maneira ridícula, imprestável, parasitária, mas sem perder a aura de homens ilustres. Brás Cubas, por exemplo, discute as mais avançadas ideias do mundo que não servem para nada. Ele mesmo vai estudar em Portugal, mas os estudos não têm utilidade alguma na vida prática e social.
Em “Esaú e Jacó” (1904), o personagem Conselheiro Aires dá aulas de como um cidadão de alta classe no Brasil imperial é um inútil. A conversa dele com Custódio (o confeiteiro) é emblemática. O dono da confeiteira tinha um dilema: sua loja se chama “Império”, mas havia começado o período da República. Caso trocasse o nome para “República”, ele temia os defensores do antigo regime imperial. Ao manter o nome tradicional, poderia chatear os republicanos, perdendo a freguesia.
A “solução mágica” foi dada por Aires, numa síntese brasileira da perversidade e do descompromisso com o mundo: “Aires propôs-lhe um meio-termo, um título que iria com ambas as hipóteses, — Confeitaria do Governo.
— Tanto serve para um regímen como para outro”.
Mestres da dissimulação
O personagem do Conselheiro Aires encarna os modos de agir numa sociedade em transformação, aquele Brasil que passava de um regime estático, baseada em valores antigos, para uma estrutura moderna de classes com sua mobilidade social. Para se ajustar bem ao novo regime, era preciso ser maleável, plástico, apto a se adaptar ao mundo regido pelo dinheiro do capitalismo. Machado usou e abusou das imagens da economia para descrever as relações sociais.
Em “Quincas Borba” (1891), o protagonista Rubião recebe uma herança, não entende as novas regras do jogo e simplesmente enlouquece. O casal Palha e Sofia, por sua vez, dá aulas de como sobreviver no novo ambiente da sociedade.
Mas ninguém é tão supremo nas artes dos novos tempos do que Bento Santiago, o narrador de “Dom Casmurro” (1899). Sai de cena o espalhafatoso Brás Cubas, entra o sujeito que controla os gestos da dissimulação, de ser uma coisa e parecer outra. O grotesco dá lugar ao tom compenetrado e dito respeitável. Bentinho vai escrever sua história para induzir o leitor a pensar que foi traído pela esposa Capitu. O segredo é esconder o caráter de um crápula na escrita refinada de homem letrado. Talvez seja a narrativa mais moderna, mais século 20, de Machado de Assis. O ciúme turva a visão de um homem, e a mulher paga o preço pela insanidade do marido.
Betinho não é apenas mera criação literária ou estética. Trata-se de uma estilização de um senhor do Império no Brasil: obtuso, medíocre, cheio de caprichos e que se mantém aferrado aos valores já superados do mundo escravocrata. O regime imperial que tornou o Brasil o último país do mundo a abolir a escravidão mercantil. Esses homens sonham em ser capitalistas, mas continuam a ser apenas donos de escravos.
Coube ao crítico inglês John Gledson a formulação de uma chave interpretativa a respeito de Bento. Para ele, o narrador de “Dom Casmurro” seria um espelho do imperador Dom Pedro II, uma alegoria da figura central do século 19 brasileiro.
“Já foi sugerido um paralelo direto entre Bento e o regime e a pessoa de d. Pedro II ao se mencionar a Maioridade e as idades de Bentinho e d. Pedro, quando são forçados a assumir uma responsabilidade para a qual não estavam preparados. Além disso, o paralelo com o regime é sugerido pelo fato de que o romance começava, a princípio, no dia do 15º aniversário da Maioridade. É provável que outros aspectos da personalidade de Bento também o vinculem ao imperador”, diz Gledson, no livro “Machado de Assis — Impostura e Realismo”, que é a mais completa análise de “Dom Casmurro”.
“O objetivo principal da sátira do romance [Dom Casmurro] é a instituição do Império e, neste contexto (porquanto representa suas contradições), d. Pedro II é ridicularizado. Seu único aparecimento no romance se dá em um sonho, o que faz sentido, dado o papel da instituição de proporcionar um ponto de convergência com as ilusões de seus súditos”, acrescenta Gledson, que vê Machado de Assis aproximando as duas figuras (uma histórica e outra fictícia) pelo “conservadorismo” e pela “falta de virilidade”.
Perversos e sádicos
Na segunda fase machadiana, os personagens aparentam a seriedade de sujeitos educados e ilustrados. São eles que controlam por completo as narrativas. No entanto, a boa vida se deve aos benefícios da sociedade cujas relações são regidas pelo “favor”, a troca desigual de benefícios entre senhores, agregados e escravos.
Quem deu a interpretação de maior alcance sobre Machado de Assis foi o crítico Roberto Schwarz. Seu livro “Um Mestre na Periferia do Capitalismo” (1991) analisa o romance “Memórias Póstumas”. Demorou quase cem anos para que alguém desvendasse o sentido histórico-estético da obra machadiana.
E há um ponto ainda mais interessante que começou a ser desdobrado nos últimos anos, a respeito do alcance do que escreveu Machado de Assis em seus romances maiores. No ano de 1980, o mesmo Schwarz mostrou a aproximação da segunda fase machadiana com a psicanálise: “Machado de Assis é um autor que em 1880 está dizendo coisas que o Freud diria 25 anos depois”.
Segundo leitores contemporâneos, personagens do autor brasileiro antecipam questões tratadas pelo inventor do método psicanalítico — com destaque para o tema da “perversão”. Em 2004, Tales Ab’Saber montou o tecido de pontos em comum, antecipações e complementos de Machado com os psicanalistas. É uma trama de conceitos que traz uma descoberta atrás da outra, iluminando o funcionamento do país até os dias atuais.
O ponto de partida de Ab’Saber é a “volubilidade” de Brás Cubas. Conforme Schwarz mostrou à exaustão, o narrador volúvel de “Memórias Póstumas” infringe as regras da narrativa e da sociedade por mero capricho de classe social. É uma infração de normas que não tem motivação ou objetivos, mas que o leva ao gozo, ao excedente de satisfação. O sujeito troca de opiniões, ideias, e não deve satisfação a ninguém.
Quem é essa figura volúvel que goza e se deleita ao quebrar as leis e regras mais básicas da sociedade do século 20? Segundo Ab’Saber, é nada menos que o “perverso” de Freud ou o “sádico” de Jacques Lacan. No entanto, de acordo com a teoria freudiana, o europeu que comete uma perversão é levado a se sentir constrangido para não repetir seu ato. O que fazem, no entanto, os contemporâneos de Brás? Não sentem qualquer remorso e voltam a praticar as mesmas perversidades indefinidamente. Machado de Assis capturou uma figura social que seria percebida apenas no século seguinte.
“A situação brasileira seria, de certo modo, ao julgarmos pela radicalidade machadiana, a do lugar da perversão própria ao sistema global de sentidos e dominações, que só pode ser pensada na experiência europeia dos anos 20 do século 20 [com Freud], quando o capitalismo rompeu definitivamente com todas as soluções de compromisso e tendeu abertamente para a destruição e o fascismo, o que na periferia do sistema [o Brasil] já aparecia muito claramente configurado ao longo de todo o século anterior”, diz Ab’Saber.
Se quisermos então entender como funciona o sujeito contemporâneo, em nível planetário do século 21, basta conhecer os personagens de Machado de Assis. Eles mostraram as artes da dissimulação, do ser maleável, flexível, e sobretudo de como sentir um imenso prazer na infração de regras. Assim, seguindo a trilha de Schwarz e Ab’Saber, é na periferia do mundo (o Brasil, por exemplo) que o capitalismo mostra suas verdadeiras formas de funcionar, sem os disfarces e ares civilizados dos europeus.
No Brasil, o perverso/sádico é ligado diretamente à herança da ordem escravocrata. Hoje, os leitores de Machado de Assis podem mapear esses tipos sociais ao navegar pelas redes sociais, folhear jornais ou assistir ao noticiário de televisão. É, por exemplo, o economista que faz PhD nos Estados Unidos, com bolsa paga pelo governo, e retorna ao país para ganhar dinheiro no mercado financeiro. No fundo, essa figura não serve para nada. Tudo gira em falso, não sai do lugar. Personagens reais de hoje são, na verdade, contemporâneos de Brás Cubas, Bentinho, Cristiano Palha e Conselheiro Aires.