A infância se presta a uma metáfora quase inesgotável de situações em que a resistência de um personagem é colocada à prova, desdobrando-se muitas vezes em conflitos de natureza diversa, que por seu turno revelam os verdadeiros mistérios da alma humana acerca dos quais se quer falar. A história de um casal pobre, lutando pela vida do único filho, encerra tanto drama que, aos poucos, vai-se observando uma tendência bastante sutil ou de se extrair algum humor dessas circunstâncias torturantes ou de se incluir elementos ainda mais nefastos e esperar que a história siga o caminho natural do terror. “Eli” está nessa segunda categoria. O filme do irlandês Ciarán Foy abusa de tudo quanto o gênero tem de mais expressivo na intenção de provocar no espectador as reações que o levam a questionar conjunturas que passam por naturais, mas que escondem raciocínios e visões de mundo perversas a respeito de problemas complexos cuja equação depende muito de pequenas revoluções no que toca a esses aspectos aparentemente comezinhos da vida, com seus tantos momentos de agonia e dor.
Eli, o menino a um só tempo forte e vulnerável interpretado por Charlie Shotwell, tem o condão de fomentar no público o desconforto e a piedade, emoções que se alternam e disputam o centro do palco no roteiro de David Chirchirillo, Ian Goldberg e Richard Naing. Talvez a ação se desenrole rápido demais em 98 minutos de uma história plena de detalhes, na forma e no conteúdo, e logo nas primeiras sequências o diretor já dá algumas pistas deveras elementares para que a audiência se situe. Uma delas é, sem dúvida, a mansão para onde Rose e Paul, os pais de Eli, de Kelly Reilly e Max Martini, levam o filho atraídos pela promessa de cura da doença rara que o relega a um isolamento paranoico, quiçá criminoso, mas necessário. Jeff Cutter, o diretor de fotografia, destaca o cinza pétreo da casa onde a doutora Isabella Horn mantém um centro de pesquisa em que se dedica a estudar a enfermidade misteriosa que acomete o garoto. A internação de Eli conduz o enredo para um segundo ato de tensão em escala, com Lili Taylor encarnando uma vilã a princípio um tanto caricata, mas que reserva boas surpresas à medida que a brutalidade do tratamento do garoto vem a lume. Como quase sempre acontece nesses filmes, Foy guarda para os últimos lances as explicações sobre o verdadeiro mal de Eli, segredo meio tolo que já se mostrava óbvio demais quando da entrada em cena de Haley, decerto a figura mais perturbadora do filme. Sadie Sink conserva a turbidez de sua personagem até o desfecho lançando mão de gestos suaves e uma dicção serena, até que a pouco menos de dez minutos para o final esse tipo confuso se encarrega de pôr as cartas na mesa.
O componente satírico de “Eli” só se faz notar mesmo nas derradeiras cenas, quando o diretor deixa no ar comentários entre assustadores e irônicos sobre manifestações ocultas, satanismo e a insólita participação das crianças nessa engrenagem. Na verdade, tudo isso esteve diante de olhos todo o tempo, a começar pelo título, e surpreendentemente não nos demos conta. Às vezes, essa é a maior bruxaria do cinema.
Filme: Eli
Direção: Ciarán Foy
Ano: 2019
Gênero: Terror
Nota: 8/10