O filme sobre Jesus, na Netflix, que todos deveriam assistir para acreditar em milagres Divulgação / Columbia Pictures

O filme sobre Jesus, na Netflix, que todos deveriam assistir para acreditar em milagres

Reproduzir como produto cultural histórias que atravessam os séculos sem prejuízo do interesse de plateias as mais incompatíveis, nunca é uma decisão sem risco. A questão começa a tocar as raias da insanidade se um filme insiste em se estender sobre um assunto hermético, delicado, complexo demais mesmo para aqueles que dominam o tema ou apenas sentem-se mexidos por ele. Essa decerto foi a iluminação de Kevin Reynolds ao sustentar a necessidade de um trabalho como “Ressurreição”, pródigo em controvérsias, muitas sem sentido. Aqui, não se assiste a uma única cena em que Jesus — chamado de Yeshua, Seu nome em aramaico antigo como os registros mostram (e mesmo quanto ao idioma falado por Cristo há polêmicas, essas, sim, de alguma monta) — é retratado na primeira fase de Sua existência, como o Deus que se faz homem no meio de outros homens. O eixo do filme, como é evidente, é construído em torno do Jesus mítico, já durante e depois da crucificação, momento em que o Salvador incomoda ainda mais as autoridades de sua época com as várias incongruências quanto ao que se esperava da morte uma pessoa comum.

Há um detalhe que pode passar despercebido em “Ressurreição”, um MacGuffin que à primeira vista não tem tanta relevância. A esse propósito, Reynolds e Paul Aiello, o corroteirista, explicam que o prestígio de Tibério César (42 a.C. – 37 d.C), soberano de Roma entre 14 d.C e 37 d.C, quando morre no exílio, ia de mal a pior na Judeia, uma das colônias mais cheias de problemas do império. Em quadro, surgem guerreiros a se enfrentar e os soldados do tribuno Clavius, o alto funcionário de Tibério vivido por Joseph Fiennes, capturam Barrabás, o bandido que o povo solta, preterindo Jesus e fazendo com que assim se cumpra o seu destino — malgrado não fique claro o bastante se os homens de Clavius só o prendem ou matam-no. Pôncio Pilatos, o governador da Judeia, personagem de Peter Firth, quer aproveitar a iminência da Pessach, a Páscoa judaica, para dar cabo do grande imbróglio de sua gestão. Antes que Tibério os visite, justamente no dia em que os hebreus comemoram terem se libertado dos grilhões de Tutemés III (1481 a.C – 1425 a.C), o faraó do Egito, e o êxodo pelo Oriente Médio em busca da terra que Javé lhes prometera, Pilatos quer solucionar o desaparecimento do cadáver de Jesus, com todas as complicações que o caso encerra.

É humanamente impossível conceber que os apóstolos tenham conseguido remover a pedra da gruta onde ficara o corpo de Jesus após Seu suplício, e logo se verifica a lógica do argumento de Pilatos, que em pânico com a hipótese muito provável de ser destituído por Tibério. Era uma questão de sobrevivência política para o governador da Judeia obstinar-se no raciocínio de que os restos mortais de Jesus haviam sido surrupiados por seus acólitos para que prosperasse o mito do homem que prega um novo estilo de vida, enfrenta os poderosos de turno, é preso, deixa-se supliciar, desce a mansão dos mortos e revive ao terceiro dia, sem que nunca ser visto por ninguém. Pilatos não contava, no entanto, que Jesus fosse mesmo voltar, o que o próprio Clavius testemunha na cena em que Pedro, pescador experimentado, passa o dia no mar e nada tira com sua rede. Depois da orientação de um homem misterioso, que se desloca pela praia contra o sol, apreciando-se somente seu vulto, tenta outra vez e o barco quase encalha, de tanto peixe. Reynolds aproveita sequências assim, descritas à farta no Novo Testamento, para apresentar um Jesus mais próximo do que fora em verdade, pele morena, olhos, barba e cabelos escuros, numa aparição bastante lacônica de Cliff Curtis. O encontro do Profeta com o Tomé, de Jan Cornet, é usado junto com a licença poética do personagem de Fiennes numa onipresença até inoportuna entre Jesus e os doze apóstolos, como a se deixar a mensagem mais inequívoca possível: nosso passado não nos define, e nunca é tarde demais para tirar a semente que cai em terra arenosa e deitá-la em solo fértil. E tudo isso é mistério da fé.


Filme: Ressurreição
Direção: Kevin Reynolds
Ano: 2016
Gêneros: Drama/História
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.