Foi um encontro almas, daqueles que duram pela vida inteira. Por volta de 1970 ou 1971, a jovem Patti Lee (anos depois Smith) assistiu ao show de uma bandinha chamada Holy Modal Rounders, em Nova York. Ficou fascinada pela beleza do baterista. Ao ver o rapaz cantando, ela pensou: “Aí está um cara que encarna de corpo e alma o rock and roll”. Foi apresentada ao final da apresentação para Slim Shadow, o sujeito da bateria.
A empatia foi mútua. Saíram para jantar, e as amigas de Patti ficaram em polvorosa com a chegada do casal ao velho restaurante e boate Max’s — um local de shows memoráveis de rock na época. Uma delas perguntou na lata: “O que você está fazendo com Sam Shepard?” Patti pensou que ele se chamava Slim, mas na verdade era Sam — que lia Samuel Beckett sem parar naquela época.
Patti ainda não era a cantora e escritora conhecida. Vivia com o companheiro Robert Mapplethorpe, no lendário Chelsea Hotel. Um antro de artistas, gente criadora. Sam já era figura de ponta do teatro de vanguarda em Nova York.
Sam e Patti passaram a se frequentar. Ele era casado e tinha um filho pequeno. E não é que um dia Sam incentivou Patti a comprar um violão (deu um de presente a ela) e a musicar seus poemas. Sam Shepard inventou o que seria Patti Smith, e que veio ao mundo em 1975 com o disco “Horses”.
Em parceria, o casal escreveu a peça “Cowboy Mouth” (boca de caubói) e subiu para encená-la no palco. “E era possível que suas histórias fossem ainda mais fantasiosas do que as minhas. Tinha uma risada contagiante e era vigoroso, inteligente e intuitivo. Na minha cabeça, ele [Sam Shepard] era o cara com a boca de caubói”, lembra Patti, em suas memórias “Só Garotos” (2010).
O “caubói com jeito de índio” morreu em julho de 2017. Soube de sua existência em 1985 ao ver o filme “Paris, Texas”. Acho que foi no Cine Brasília. Um choque para quem tinha 15, 16 anos. Caetano Veloso disse que a história era um dramalhão mexicano. O filme de Wim Wenders se baseia nas “Crônicas de Motel” de Shepard. Parecem um diário, com anotações, poemas.
Na tela, o personagem Travis é uma figura quase beckettiana: mudo, sujo, maltrapilho, um clown triste. Ao final, Travis vai contar o que aconteceu antes de surgir perdido no deserto. Um monólogo, ao som de uma das melhores trilhas sonoras de todos os tempos, composta por outro caubói-índio (o guitarrista Ry Cooder).
Patti Smith, Wim Wenders, Ry Cooder, Samuel Beckett. O andarilho Shepard rodou por Nova York e pelos desertos do oeste dos EUA. Criou, interpretou. Acabou morrendo de uma doença que deixa o corpo lentamente imóvel, mas com a cabeça em pleno funcionamento. O último lance foi a escrita de um romance.
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Sam Shepard escolheu a forma do romance, que não havia usado antes, para encerrar uma trajetória altamente reconhecida como autor de peças teatrais e de contos. O esforço resultou no livro “Aqui de Dentro”. A narrativa condensa estilos e temas que, com suas estranhezas, estiveram presentes em sua obra.
A obra final de Shepard mistura ficção e memórias pessoais. Onde começa uma, termina a outra. Quem conhece algo do autor, nota a escrita de silêncios, imagens do deserto, famílias arruinadas e pensamentos delirantes, absurdos ou até surreais dos personagens.
“Aqui de Dentro” traz um ator/escritor que, assim como Shepard, está por volta dos 70 anos e mora sozinho. O cenário é uma região desértica dos EUA, repleta de uivos de coiotes e cortada por estradas. Ele inicia a narrativa com um delírio: o pai morto reduzido ao corpo de um “homenzinho minúsculo” e levado até ele no porta-malas de um carro.
O pai é um veterano da Segunda Guerra Mundial. O narrador rememora o momento em que, aos 13 anos, assiste ao pai tendo uma relação sexual com a garota Felicity, de 14 anos. Em pouco tempo, também ele passa a ter um caso com a adolescente. Esse é o fio condutor que Shepard costura fragmentos que vão de narrativas curtíssimas aos diálogos teatrais e a uma escrita próxima da poesia.
“‘Aqui de Dentro’ é um atlas se amalgamando, marcado pelos saltos das botas de um andarilho que trilha instintivamente, de olhos abertos, as distâncias de suas estradas misteriosas”, assinala Patti Smith, no prefácio do livro.
Os diálogos do narrador com a Garota Chantagem são impagáveis e remetem a Samuel Beckett, com seus silêncios, indeterminações e situações de espera infinita. Aos 20 anos, a “chantagista” é a parceira atual do narrador aos 70. “Me perguntaram sobre a família. Falei que não tinha. Pais mortos. Irmãs longe. Filhos espalhados”, conta, em meio a mais um delírio na cama de um hospital.
Num ponto alto do livro, ele e a Garota Chantagem se encontram em um set de filmagem. O autor dá a pista de que o narrador pode ser ele mesmo. A descrição é dos bastidores do filme “Álbum de Família” (2013), no qual Shepard interpretou um alcoólatra que se mata e deixa, para trás, uma história familiar de horrores. “Conhecia isso [a trama do filme]. Não precisava ensaiar. A minha vida inteira era um preâmbulo”, observa o narrador.
No romance, a lição de Franz Kafka é bem assimilada por Shepard: “As sereias têm uma arma ainda mais assustadora que o canto — o silêncio”. A cada passo dado, a escrita parece mais esconder do que revelar nesse canto final de sereia.
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“Por que alguém se sente compelido a escrever?” A pergunta, Patti Smith fez a si mesma no pequeno livrinho “Devoção” (2017). A resposta começou a ser dada sete anos antes ao lançar o primeiro livro em prosa. Memórias de uma cantora e compositora que viveu com intensidade o mundo da vanguarda da arte pop e do punk a partir dos anos 1970.
Vanguarda é um termo que vem a linguagem da guerra, são aqueles que estão na linha de frente. Patti era uma jovenzinha que se mudou para a Nova York suja, degradada e cheia de gente interessante: Andy Warhol, Lou Reed, o pessoal do teatro alternativo e Robert Mappelthorpe (o primeiro marido).
Ele foi um fotógrafo que chocou meio mundo com imagens sadomasoquistas e morreu tragicamente de Aids. No relacionamento vanguardista, Patti tinha liberdade para ter suas experiências. Foi quando conheceu Sam Shepard.
“Precisamos escrever, mas não sem um esforço consistente e não sem uma dose de sacrifício: para dar voz ao futuro, revisitar a infância e para dar rédea curta às loucuras e aos horrores da imaginação antes de oferecê-la a uma vibrante raça de leitores”, diz Patti em “Devoção”, no capítulo em que descreve sua visita à casa do escritor Albert Camus.
A relação de Patti Smith com a palavra é profunda. Nos dias de hoje, só tem paralelo na qualidade da escrita com o inglês Morrissey (ex-vocalista do The Smiths) e obviamente com Bob Dylan. Este último, aliás, foi representado por Patti na cerimônia da entrega do Prêmio Nobel de Literatura em 2016.
Calejada numa carreira de mais de 40 anos no palco, Patti gaguejou e teve de se desculpar no meio da belíssima canção “A Hard Rain’s A-Gonna Fall”, de Dylan. “Estou tão nervosa”, disse à plateia na Suécia. Lá estava a maior cantora de rock e do pop da História, porém menos célebre do que Janis Joplin.
A música de Patti tem o espírito do punk, mas a sonoridade remete aos grupos nova-iorquinos Velvet Underground e Television. Este último era liderado por Tom Verlaine, falecido em janeiro de 2023. A autora escreveu um brilhante obituário de Tom para a revista “New Yorker”. Aos 76 anos de idade, continua a subir nos palcos com seu fiel escudeiro, o guitarrista Lenny Kaye.
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O último encontro de Patti Smith com Sam Shepard foi para a revisão do romance “Aqui de Dentro”. Uma música final ou um ato conclusivo: “A gente acordava cedo, trabalhava por várias horas, então fazia uma pausa, sentado do lado de fora nas cadeiras Adironback [da casa de Sam] e falando basicamente de literatura. Nabokov e Tabucchi e Bruno Schulz. Eu dormia no sofá de couro. O respirador de Sam tinha um zumbido suave, envolvente. Uma vez que ele estivesse pronto, depois de puxar as cobertas para cima e cruzar as mãos, eu sabia que era hora de dormir, e algo dentro de mim aquiescia”. Os momentos finais dessa amizade estão descritos no livro “O Ano do Macaco” (2019), no qual Patti concentra sua escrita na perda de dois amigos muito próximos.