Filme na Netflix vai te manter paranoico e te fazer sentir calafrios por 103 minutos Divulgação / Universal Studios

Filme na Netflix vai te manter paranoico e te fazer sentir calafrios por 103 minutos

O menoscabo com a natureza, a ânsia por um progresso desmesurado e sem ordem, a negligência para com as eternas distorções do capitalismo, fabricando catástrofes e multiplicando injustiças, todos esses fatores, reunidos ou cada qual tomado em sua complexa dimensão, são excelente matéria-prima para as tantas histórias de ficção científica que acabam por se tornar a definição mesma do cinema, espécie de cartão de visita de tudo quanto diretores engajados e aguerridos podem quando se trata de salvar o homem do homem. A vontade de conhecer e explorar domínios universo afora entra de contrabando, e filmes a exemplo de “O Enigma de Outro Mundo” atravessam o tempo como sinal inequívoco e dialético de nossos avanços e de nossa miséria. O holandês Matthijs van Heijningen Jr. renova o fôlego de uma história que frequenta o imaginário coletivo ao longo do século 20, sem prejuízo de interpretações cada vez mais acuradas, cujo recorte vai se esmerando em recursos técnicos a fim de, pela forma, o espectador se rende também ao conteúdo.

Adaptado de “Who Goes There?” (“quem vai lá?”, em tradução literal), novela de ficção científica do escritor norte-americano John W. Campbell Jr. (1910-1971) sob o pseudônimo Don A. Stuart, o roteiro de Eric Heisserer prima por conservar a essência de desconforto, de inadequação, de repugnância do texto de Campbell, publicado pela primeira vez em agosto de 1938 na revista “Astounding Science Fiction”. Desde então, “Who Goes There?” já ganhou duas releituras para o cinema, além dessa: “O Monstro do Ártico” (1951), levado à tela por Christian Nyby (1913-1993); e a dirigida por John Carpenter. Heijningen faz de sua versão um prelúdio do filme de Carpenter, onde explica de que forma os cientistas liderados pelo doutor Sander Halvorson de Ulrich Thomsen chegaram à ameaça que, se vai ver, resiste a temperaturas que chegam com facilidade a sessenta graus negativos enterrada a duzentos metros. A imensidão das montanhas da Antártica mostradas na primeira sequência, num branco azulado que a fotografia de Michel Abramowicz faz contrastar com a luz do sol, é bem menos assustadora que o cenário que não tarda a predominar na história. Kate Lloyd, a jovem paleontóloga americana vivida por Mary Elizabeth Winstead, passa o inverno de 1982 na companhia de cerca de outros vinte colegas, quase todos noruegueses e homens, e é por aí que o diretor começa a encadear questões como misoginia e xenofobia, com muita sutileza, contrapondo os personagens de Winstead e Thomsen. Naturalmente, os dois estão a todo momento divergindo quanto aos rumos da pesquisa, e a descoberta dessa estrutura pluricelular, comemorada no improvável pub em que a equipe costuma reunir-se depois do expediente, é interrompida por Derek, de Adewale Akinnuoye-Agbaje, que por pouco não escapa da fúria da Coisa — foi com esse nome que o enredo de Campbell eternizou-se no cinema nos Estados Unidos.

Não é difícil perceber que filmes como “O Enigma de Outro Mundo” eram metáforas extremamente sofisticadas sobre o medo do desconhecido que campeia junto à humanidade desde o princípio dos tempos, incluindo o comunismo quando da estreia do longa de Nyby e a aids, que começava a espalhar paranoia e a acirrar a discriminação nos anos 1980, quando Carpenter lançou seu trabalho. O grande mérito da releitura de Heijningen é, como seus antecessores, estar atento ao que se passa no mundo neste século 21, replicando no corpo da história as minudências que preservam a importância do texto. A simbiose entre o homo sapiens e formas de vida monstruosas esconde os velhos temores e as novas batalhas que precisamos encampar. Um enigma sem mistério deste mundo que nos rodeia.


Filme: O Enigma de Outro Mundo
Direção: Matthijs van Heijningen Jr.
Ano: 2011
Gêneros: Ficção científica/Mistério/Terror
Nota: 8/10