Um cineasta americano jovem estaria apto a tratar num filme de conflitos bélicos tão sangrentos quanto idiossincrásicos num país como a Nigéria, cheio de contrastes, de questões que se desdobram para muito além da geopolítica, da economia e, claro, da diplomacia? Uma das marcas registradas do trabalho de Antoine Fuqua sempre foi desviar com sutil galhardia do politicamente correto, emitir opinião sobre o que lhe brota à cabeça e deixar que a encrenca chegue naturalmente — às vezes de forma açodada e desproporcional, e “Lágrimas do Sol” confirma a regra. Prestes a completar duas décadas de lançamento, o drama de guerra de Fuqua — que sempre foi, verdade seja dita, muito mais a história simples, quase ingênua, de um homem obstinado em executar uma missão — resta datado, mormente se se tomar por parâmetro a cornucópia de produções congêneres que vieram a lume desde sua estreia, em 17 de outubro de 2003, tanto na forma como no conteúdo. Seria insanidade querer comparar “Lágrimas do Sol” com joias finas do quilate de “Apocalypse Now” (1979), certamente o grande divisor de águas dos filmes de guerra do cinema moderno, porém há semelhanças mais ou menos evidentes entre o já clássico enredo de Francis Ford Coppola e o longa de Fuqua. A começar pelo elenco.
O Walter E. Kurtz de Fuqua é, guardadas as devidas proporções, A.K. Waters. Bruce Willis encarna o espírito militar do personagem imortalizado por Marlon Brando sem a aura psicopática do antagonista de Coppola — sem muito do carisma também, ainda que Willis abiscoitasse merecido destaque com esses personagens, embora o sucesso dessas interpretações o tenha levado a acomodar-se e esquecer de contrabalançar a carranca dos homens duros como o tenente Waters com a doçura de tipos a exemplo do detetive David Addison Jr. de “A Gata e o Rato” (1985-1989), de Glenn Gordon Caron, responsável por alavancar sua carreira. Fuqua abre seu filme mencionando alegoricamente a Guerra Civil da Nigéria, entre 6 de julho de 1967 e 15 de janeiro de 1970. O general Mustafa Yakubu acabara de derrubar o governo de Samuel Azuka, o presidente eleito. Yakubu, vivido por Kanayo Chiemelu, foi, claro, inspirado na nefasta figura de Yakubu Gowon, o déspota que lançou a Nigéria no abismo de sangue em que concidadãos mataram-se sem pejo por três anos. Waters desembarca não na Nigéria, mas em algum ponto da costa africana na pele do salvador branco imbuído da tarefa de resgatar Lena Hendricks, a médica naturalizada americana de Monica Bellucci e um padre e duas freiras que realizavam atividades filantrópicas num país que já se ressentia da violência de confrontos étnicos há algum tempo.
Takes rápidos da selva nigeriana, por onde os personagens de Willis e Bellucci se embrenham até Camarões na intenção de fugir do inferno da guerra, dão azo ao antirromance de Waters e Lena, que deixa escapar um “Sou toda sua” quando do primeiro encontro com o tenente, numa sala de cirurgia improvisada. “Lágrimas do Sol” tem delicadezas que tais, como o padre Gianni, de Pierrino Mascarino (1939-2017), degolado por um comandante implacável dentro da igreja mudada em enfermaria, ou a subtrama ligeira que mostra a aliança entre o soldado e Arthur, o filho de Azuka, de Sammi Rotibi, na tentativa de recobrar a paz. O núcleo dos superiores hierárquicos de Waters poderia ser todo cortado, uma vez que ele só obedece a seus instintos — nisso se parecendo com o vilão de Brando inequivocamente —, o que daria mais fluidez ao roteiro de Alex Lasker e Patrick Cirillo. Este foi o filme com que Fuqua, cuja produção mira mais a regularidade que a excelência, chegou mais perto dos grandes realizadores de Hollywood, um lugar meio dado a canibalizar diretores rebeldes e sequiosos por fortuna.
Filme: Lágrimas do Sol
Direção: Antoine Fuqua
Ano: 2003
Gêneros: Thriller/Guerra/Ação/Drama
Nota: 8/10