Muitos fatores explicam — porém nunca justificariam — ao menos em parte, a rejeição aos judeus levada à essência da loucura e ao núcleo mais duro do crime e da abjeção por Adolf Hitler (1889-1945) no comando da Alemanha nazista entre os anos 1930 e 1940. Talvez os mais vigorosos deles sejam os que fazem referência ao orgulho judeu, ao brio de um indivíduo em reconhecer-se como parte de um povo escolhido por Deus — para eles, claro, “o” povo escolhido por Deus — a fim de ser fecundo, multiplicar-se e ocupar mares e campos, a partir de Israel, uma espécie de Éden redivivo, tomado em mais da metade de sua extensão pelas areias escaldantes do deserto de Neguev. Um dos argumentos usados por um grupo pequeno, mas ruidoso, de judeus para ratificar essa suposta predileção divina cai por em terra em “One of Us”, das diretoras Heidi Ewing e Rachel Grady, duas das mais sérias pesquisadoras da religião e seus efeitos sobre as organizações sociais de que o cinema dispõe hoje. Com muita cautela, Ewing e Grady conseguem a façanha de dissecar uma das comunidades judias mais fechadas, em plena Nova York, mais precisamente no Brooklyn, no extremo oeste na cidade. O pouco que se sabe sobre os hassídicos, judeus ultraortodoxos que vivem segundo leituras implacavelmente rigorosas — e muito particulares — da Torá, o livro sagrado dos antigos hebreus, foi dito por estudiosos amadores e acadêmicos que se debruçam sobre seus costumes e tradições amparando-se no que podem absorver de relatos colaterais. Em “One of Us”, três dissonantes vozes hassídicas se levantam, provavelmente sem ter muito claras as consequências de seu corajoso desabafo.
Depois de uma introdução calorosa, marcada por solos de saxofone em frente ao rio Hudson, o espectador tem a dialética impressão, ora verdadeira, ora capciosa, de que os hassídicos misturam-se à imensidão da Nova York contemporânea. As diretoras explicam que os hassídicos, trânsfugas dos genocídios étnicos que assolaram a Europa Oriental ao longo dos séculos 18 e 19 — o que, lamentavelmente seguiu acontecendo no século passado —, serviram-se da Grande Maçã como a fortaleza que garantiria sua sobrevivência, física e cultural, o que se comprovou. As vestes deveras sisudas, sempre negras, os chapéus e as barbas hirsutas dos homens culminando em cascatas de pelos enrolados nas costeletas, além de mulheres em vestidos longos e com cabelos ocultos sob lenços alvos vieram pouco depois, como uma maneira de se distinguirem dos demais judeus, de marcar posição. Os ultraortodoxos nunca deixaram de praticar o iídiche, híbrido das línguas germânicas amalgamadas a elementos do aramaico e do hebraico, e todo aquele que nasce num lar hassídico e se rebela merece o repúdio e o linchamento moral do grupo. Esse é o gancho de que “One of Us” se vale para apresentar Etty, sem dúvida, a personagem que melhor encarna essa noção de apostasia, de renúncia a uma fé que se transformada na agonia mais insuportável a que alguém pode se sujeitar e tudo o que tal atitude traz de transformador — para o bem e para o mal. Essa pacata dona de casa, mãe de sete filhos e convicta quanto ao papel que deveria desempenhar em sua família e, principalmente, diante de seus correligionários, começa a questionar sua natureza ontológica aos dezenove anos, logo após ter sido forçada a casar-se com um rapaz um ano mais novo que nunca vira até então. Houve, claro, o choque de ter seus longos e fartos cabelos negros tosados pela mãe antes da noite de núpcias, um dos dogmas mais observados por famílias ultraortodoxas, mais o sexo compulsório às sextas-feiras e o voto de obediência cega ao marido, mas decerto o que mais escandaliza no processo de autodescoberta de Etty é a consequente demonização a que é submetida. Ao resolver deixar o que conhecia como vida e ir morar num endereço que tinha por seguro, Etty torna uma sombra do que era. Tendo direito a visitar os filhos em datas esporádicas, passou também a ter de se habituar às tentativas de invasão dos parentes do ex-companheiro. A justiça de Nova York não determinou nenhum prazo para o julgamento da ação que move contra ele.
Não menos estarrecedoras, as histórias de Ari, vítima de abusos sexuais cometidos por um rabino — o trauma rendeu-lhe o vício em cocaína do qual ainda não se livrou de todo e as duas overdoses de escapou para contar —, e Luzer, que deixou a mulher e os filhos em Nova York, onde morava dentro do carro, num estacionamento público, com destino a Los Angeles levando na mala o sonho de uma oportunidade em Hollywood, só fazem referendar uma ideia central. Duramente reprimidos em Israel, onde são encarados como fundamentalistas lunáticos — não sem razão, uma vez que protagonizam atentados inclusive contra os próprios judeus (e aqui é forçoso lembrar o assassinato covarde de Yitzhak Rabin [1922-1995]) —, só mesmo a América para admitir pessoas com visões de mundo tão intolerantes, em nome de sua vasta e inquebrantável tradição democrática. Mas a democracia americana não pode ser o Muro da Vergonha.
Filme: One of Us
Direção: Heidi Ewing e Rachel Grady
Ano: 2017
Gêneros: Documentário/Religião/Sociologia
Nota: 8/10