A obra-prima do cinema brasileiro, que conquistou o mundo, está na biblioteca da Netflix Divulgação / Sony Pictures

A obra-prima do cinema brasileiro, que conquistou o mundo, está na biblioteca da Netflix

O Brasil não é para principiantes, São Paulo e seu progresso não são para principiantes. Nossa terra dá as frutas mais gostosas — a cem mil réis a dúzia, ou mais caras — e as jabuticabas jurídicas com que capas pretas gordos como preás de sonho se lambuzam, do Oiapoque ao Chuí. A década de 1980 vem e volta como capricho de um passado que insiste em não passar. A genialidade de Hector Babenco (1946-2016) nos provoca e assegura que continuamos nos loucos anos 1980, na década perdida ela mesma, se levamos em conta que filmes como “Carandiru” seguem atuais como pastel de feira, ovo colorido, Carnavais de centenas de milhares que sequestram o direito de ir e vir de sete milhões, prefeitos malandros dados a samba, suor, cerveja e pouco trabalho e presídios sempre cheios dos três pês de que nos falou a seu modo Raymundo Faoro (1925-2003), com a lhaneza e a classe que lhe eram tão peculiares. O maior filósofo contemporâneo da República da Sunga chama-se Leo Santana. O Brasil é uma zona de perigo de 8.516.000 quilômetros quadrados — para quem não ganha um décimo do cachê de Santana.

Filmes como “Carandiru” têm de ser vistos e revistos e vistos uma terceira vez ao menos duas vezes ao ano, como um vermífugo, entre uma e outra canção de Santana, nosso mais recente grande pensador (me disseram que ele mede quase dois metros). Tenho de me penitenciar, primeiro com Babenco, que lamentavelmente não irá me ler, depois com o divo baiano, idem: tento há semanas concluir “A Viajante Inglesa”, livro da historiadora carioca Mary del Priore com que me regalaram as almas generosas da editora Vestígio, mas quando dou por mim estou afundando nos meus quatro travesseiros estofados por penas de gansos franceses e só acordo porque noto uma saliva renitente no canto da boca, com o perdão da escatologia. A prosa de Del Priore é a um só tempo desabotoada e profunda, narrativa e descritiva, e faço muito proveito de seus relatos quando os tomo em horas civilizadas. Entende-se muito do Brasil com trabalhos como “A Viajante Inglesa” e “Carandiru”, mas nem cientistas sociais e muito menos cineastas superam o brilhantismo inzoneiro de Leo Santana, embora Tio Gian seja muito old school e só conheça a “Dança de Créu”.

Este escriba não acredita em coincidências. No ano em que Faoro morreu, Babenco botou na rua “Carandiru”, uma história que o Brasil que o Brasil não conhece também ignora. O roteiro, escrito pelo diretor com Victor Navas e Fernando Bonassi a partir de “Estação Carandiru”, o livro-reportagem do médico Drauzio Varella publicado pela Companhia das Letras em 1999, é dos mais mordazes da história do nosso cinema, embora um tanto episódico e caudaloso demais — sim, eu sei que o texto dessa trinca de ases virou seriado dois anos depois, mas desde quando seriados baseados em filmes tem o mesmo frescor que a história original, mormente se apreciados na sala escura de um cinema com um projetor gigantesco, sistema de ar refrigerado central e o calor das massas, reagindo frenética (até demais) ao rebolado de Rita Cadillac ou ao beijo nada técnico de Rodrigo Santoro — que está para as artes dramáticas como Santana está para a filosofia — em Gero Camilo, um ator de supino talento? Certo, reassistindo ao longa de monumentais 140 minutos em casa não derramei uma furtiva lágrima sequer diante do amor improvável da musculosa Lady Di e Sem Chance, decerto um retirante que deixou de arrancar a vida com a mão num sertão qualquer do Brasil profundo e veio tentar a sorte no Sul Maravilha, onde se perdeu de vez. Mas como não se emocionar e se iludir frente às trapaças do destino, conjecturando que esses dois espíritos tortos serão mesmo felizes para sempre fora dos muros sem poesia da cadeia quando da liquidação da fatura que têm com a lei que nunca os protegeu?

Em meio aos 7.500 “reeducandos” do Carandiru, construído em 21 de abril de 1920 para abrigar 4.000 internos, enormidade que se julgava impossível de alcançar à época, Lady Di e Sem Chance continuaram tão invisíveis quanto no convívio com a população extracárcere, da mesma forma que Josué dos Santos, o Majestade de Ailton Graça, malandro bígamo que continuou a receber as duas mulheres nos dias de visita e pôde, com a ajuda do Estado, continuar seus negócios escusos de dentro da cela, ou Chico, o velho sonhador interpretado por Milton Gonçalves (1933-2022), providencial respiro lírico em metáforas de liberdade encarnadas por balões que ganham o céu.

Lady Di, Sem Chance e Majestade foram dos poucos que sobreviveram ao massacre de 2 de outubro de 1992, além de seu Chico, que conseguira a liberdade depois de ter seu alvará de soltura publicado sabe Deus ao cabo de quanto tempo de cumprida sua pena. Também é um mistério que só o Altíssimo conhece a causa que motivou a investida covarde da Polícia Militar do Estado de São Paulo contra homens indefesos, “quase pretos, quase todos pretos de tão pobres”, como canta Caetano Veloso, se uma rixa de futebol, uma piada de mau gosto ou uma cueca. A PM, comandada por um sujeito que anos mais tarde fora morto pela companheira, os assassinou diante de nossos olhos, diante dos olhos do mundo, e não dissemos nada. Dez anos e dois meses depois, em 9 de dezembro de 2002, o governador Geraldo Alckmin ordenou a implosão do complexo. Já não havia ali nenhum preto pobre para ser executado.


Filme: Carandiru
Direção: Hector Babenco
Ano: 2003
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.