Se você acha Capitu inocente, você é machista

Se você acha Capitu inocente, você é machista

Meninas e meninos eu leio e releio, “Dom Casmurro”, do bruxo Machado de Assis, e sempre me surpreendo com as leituras deturpadas que esse clássico absoluto sofre. Incluindo leituras feitas por gigantes como Antonio Candido, Alfredo Bosi, Roberto Schwarz e Silviano Santiago. Sim, estou afirmando que eles estão errados em suas análises de “Dom Casmurro”Dom Casmurro, Machado de Assis (Antofágica, 464 páginas). Acendam suas tochas, preparem as pedras e leiam abaixo meus argumentos.  

Em 2008, no tempo vago entre os jogos olímpicos e as eleições, o Brasil comemorou o centenário da morte de seu maior escritor, Machado de Assis. Eventos acadêmicos, matérias na imprensa, lançamento de livros, correspondência inédita revelada entre outras coisas. O ato final ficou por conta da exibição da luxuosa minissérie global “Capitu”, baseada na obra-prima do autor, “Dom Casmurro”. Dirigida por Luiz Fernando Carvalho, a produção foi encenada em um tom de farsa sofisticada, marcadamente onírica e surreal. Essa opção estética não me agradou. Creio que “Capitu”, por toda melancolia que impregna as páginas do romance original, só funcionaria esteticamente se seguisse o estilo realista de “Os Maias”, outra minissérie de Carvalho. Contudo, por fim dei-me conta que, no atual cenário cultural brasileiro, nada seria mais óbvio do que ver “Dom Casmurro” transfigurado em teatro do absurdo. Não é por acaso que apresentam Capitu linda e glamorosa, na pele de seda de Maria Fernanda Cândido, ao lado de um Bentinho abobalhado, interpretado por Michel Melamed. Não é de agora que procuram transformar Bento Santiago de personagem trágico em estereótipo patético.

Dom Casmurro
Dom Casmurro, Machado de Assis (Antofágica, 464 páginas)

Os tempos mudaram. Quando o livro foi publicado, em 1899, a possibilidade de “culpa” de Capitu não representava um problema ético-estético-socioantropológico. Hoje, quase ninguém coloca em dúvida sua inocência. Duvidar dela é considerado machismo, chauvinismo e congêneres. O pretenso maior mistério da literatura brasileira é mera falácia, modo de dizer. Não há mais dúvidas. Capitu, a despeito de todo simbolismo contido em seus lendários “olhos de ressaca”, passou a ser vista como uma mártir vitimada pelo ciúme obsessivo do marido. A principal responsável foi uma alienígena. Trata-se da pesquisadora americana Helen Caldwell, autora do livro “The Brazilian Othello of Machado de Assis”, publicado em inglês em 1960 por uma editora universitária. A obra quase não foi lida no Brasil, era de difícil acesso. Mas tornou-se muito conhecida a partir de comentários de críticos como Antonio Candido, Alfredo Bosi, Roberto Schwarz e Silviano Santiago. Todos compraram e propagaram a tese de Caldwell. Imperialismo cultural, a gente se vê por aí! A tradução para o português, feita por Fábio Fonseca de Melo, e sua publicação, pela Ateliê Editorial, só ocorreu em 2002.     

Na década de 1990, Lygia Fagundes Telles e Paulo Emílio lançaram um romance onde recontavam a narrativa do ponto de vista da inocente Capitu. No prefácio, mostram-se horrorizados com o fato de Bentinho ter saído para jantar ao saber da morte de Ezequiel, o filho que acreditava não ser seu filho. Paulo Francis ridicularizou o escândalo do casal de escritores no Diário da Corte, sua coluna em “O Estado de São Paulo”. “Mais uma vez me parece que mulher não entende certas reações masculinas. Falei outro dia de Aquiles gozando fraternamente um troiano antes de matá-lo, o que deixou Simone Weil chocada. Agora, o prazer furibundo de Bentinho em ver o filho da p… morto escapa à bela Lygia. E por que essa mania de inocentar Capitu?”.

Francis não é o único intelectual brasileiro fora de moda. Em 1994, o escritor curitibano Dalton Trevisan lançou o ensaio “Capitu sem enigma”, no livro “Dinorá — Novos Mistérios”, para protestar contra o que considera leituras deturpadas do maior romance de nosso maior romancista. Trevisan se pergunta: “nosso Machadinho ocuparia mais da metade do livro com as manhas e artes de dois sublimes fingidores, sem que haja traição?”. Ele mesmo respondeu, aproveitando para dar uma lição de como se escrever deve ficção: “um personagem não espirra em vão, na página seguinte tosse com pneumonia”. Concluiu lembrando que “o livro, de 1900, foi publicado em vida do autor — até a sua morte, oito anos depois, um único leitor ou crítico negou o adultério?”. Segundo Trevisan, não. Aparentemente, a teoria acerca da inocência de Capitu difundiu-se muitas décadas após a morte do autor.

Tal teoria assenta-se no fato que “Dom Casmurro” é narrado em primeira pessoa. O marido que se imagina traído, é o narrador. O que narra? Seus delírios de homem ciumento. Da mesma forma que Otelo, vê adultério nos mínimos atos da esposa e de Escobar, seu amigo, sócio e ex-colega de seminário. É um alicerce frágil para sustentar premissa tão psicologicamente complexa. Sobretudo considerando que, enquanto Escobar estava vivo, o desconfiado narrador nunca suspeitou de nada. Na verdade, ao contrário do que possa parecer, o famigerado “argumento da voz narrativa” é favorável a Bentinho, não contra ele. Como assim? Esse é o grande ponto que, normalmente, escapa da crítica especializada, engessada que está pela perspectiva consagrada por Helen Caldwell e os medalhões brasileiros que a avalizaram.

Quando escreve o livro, Bentinho não é mais Bentinho, é um quase eremita conhecido na cidade como Dom Casmurro, por seu temperamento arredio “de homem calado e metido consigo”. Inicialmente, desejou compor uma obra de fôlego sobre um grande tema, “jurisprudência, filosofia e política”, mas não se viu preparado para tanto. Depois pretendeu escrever uma modesta “História dos subúrbios”, que resolveu deixar para depois. Finalmente, decidiu escrever suas memórias, “deitar no papel as reminiscências que me vierem vindo”, “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”. Sem dúvida, sua vida girou em torno de Capitu. Ela é a protagonista de sua existência, no amor e no desamor.

Essas não serão memórias destinadas à gaveta. Ele pretende publicá-las. Em diversos momentos dirige-se diretamente aos leitores. A questão é: o que faria um homem conhecido pela discrição expor sua vida? Sobretudo, expor sua humilhação? Imagino que, em primeiro lugar, o desejo de exorcizar os fantasmas do passado. Sendo assim, por que mentiria? Estaria mentindo apenas para si mesmo, ao mesmo tempo em que, gratuitamente, denegrirei sua imagem de macho alfa, rico e culto. Trata-se de um homem do século 19. Ser “corno” naquela época representava o maior dos estigmas sociais, algo que deveria ser guardado sob sete chaves. Não é dramaticamente verossímil que inventasse algo assim. Portanto, Betinho feito Casmurro pode até estar errado, pode até estar terrivelmente equivocado nas conclusões que tirou, mas é preciso considerar que ele acreditava piamente no que descreveu. Narra conforme se lembra. Nem mais nem menos. Isso é importantíssimo para compreender o romance. 

Em segundo lugar, desejava vingar-se. Em certo momento, dirigiu-se a uma provável leitora em particular: Sancha, esposa de Escobar. Pede que ela não prossiga a leitura, que a interrompesse a partir do ponto em que iria expor suas desconfianças acerca de seu bem-amado marido. Além de um excelente recurso dramático, uma preocupação de cavalheiro. Ou não? Em todo caso, dificilmente, Sancha pararia de ler depois de ser aconselhada a parar de ler. Essa, talvez, fosse sua vingança, sua motivação oculta para escrever o livro. Manchar a memória do ex-amigo, compartilhando com sua dedicada esposa a dor da traição. Todos os outros envolvidos estavam mortos, exceto os traídos. Não era mais possível expiação, apenas ressentimento.

Os partidários da inocência de Capitu costumam apontar dois episódios que antes eram usados contra ela para, imaginam, comprovar o temperamento delirante de Bentinho. O primeiro é o capítulo “CXIII — Embargo de terceiro”. Aqui, Bentinho chega mais cedo de uma apresentação teatral, “voltei no fim do primeiro ato”, e encontra Escobar em sua casa. Está visivelmente embaraçado, o que pode ser observado no diálogo titubeante. Capitu, que não acompanhou o marido por dizer-se indisposto, está fora da cama (e se estivesse na cama?) e bem de saúde. O outro capítulo é o de número “CXXIII — Olhos de ressaca”. Nele, durante o enterro de Escobar, Capitu “olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa”, que deu para o marido a certeza de que algo não estava certo. Situações suspeitas, sem dúvida, mas nada concreto. Pode ser que sim, pode ser que não. Os defensores de Capitu não estão errados em questioná-las. Afinal, por que um amigo íntimo não pode visitar a casa de seu confrade em um horário pretensamente impróprio? O que impede uma mulher de bom coração chorar a morte de um amigo da família? Nada. Ademais, não me parece plausível que os supostos adúlteros se encontrassem na casa de Bentinho. Os empregados falam demais. Os vizinhos são atentos. Haveria de ter hora e lugar mais apropriado. 

Por outro lado, no capítulo “CXXXVIII — Capitu que entra”, o que acontece não deixa sombra de dúvidas. Ao fim do capítulo anterior, Bentinho, que planejava se matar, disse para Ezequiel que não é seu pai. É quando Capitu entra e começam a discutir. O marido acusa a esposa de adultério. “Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu.” Depois de muita discussão, finalmente, ela diz: “Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança… A vontade de Deus explicará tudo…”. Bentinho riu diante dessa frase. Eu também. Note que Bentinho não citou a tal semelhança, o fato foi levantado por Capitu.

O argumento número um dos defensores da inocência de Capitu é dizerem que Bentinho enxergava semelhança onde não tinha. Via Escobar em Ezequiel por puro delírio. Via o que queria ver, como forma de, intimamente, justificar suas desconfianças. Na prática, a aparência, a “cabeça aritmética” eram ilusões. Sendo assim, Capitu também delira, uma vez que admite a semelhança. É fato e contra fatos não há argumentos. Tanto não há que, pega de surpresa, o melhor que Capitu pôde pensar para justificar-se foi um ingênuo “a vontade de Deus explicará tudo”. Essa saída funcionava bem na teologia de Santo Agostinho, em coisas mais terrenas não é lá muito eficaz. Só dispondo desse fraco argumento, Capitu nem resistiu muito. Rápido demais para uma inocente ultrajada, a discussão nem havia esquentado ainda e ela já disse: “peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais”.

O que mais me intriga nesse debate é o fato de considerarem machismo defender a culpa de Capitu. Não compreendem que é justamente o contrário. Querer transformar a personagem em uma santa abnegada, uma burguesa “bela, recatada e do lar”, é um equívoco. Falamos de uma quase contemporânea de Anna Karenina e Emma Bovary. Como os primeiros capítulos do romance mostram muito bem, Capitu sempre foi precoce, vivaz, calorosa. O perfeito contrário de Bentinho. Sua casmurrice não surgiu do nada, foi apenas potencializada pela desilusão. Será que uma mulher tão cheia de vida realmente ficaria satisfeita em um monótono casamento burguês? Sentira-se plena em um casamento com um homem superprotegido pela mãe, que, desconfiava-se, era estéril? Bastava ir para Europa ou Petrópolis de vez em quando para sufocar seus desejos de aventura e romance? Quero acreditar que não. Quero acreditar que Capitu não se deixou domar tão facilmente. Afinal, lembrando o que ensinou Dalton Trevisan, um exímio nadador não morre em uma simples ressaca do mar impunemente, se existe um personagem com “olhos de ressaca” na trama.

Por fim, não se pode negar que Capitu foi uma mulher de sorte. Sorte pelo marido ser um homem mais da pena do que da espada. No século 19, lavar a “honra com sangue”, tendo ou não “razão”, tendo ou não provas, era coisa corriqueira e reconhecida como legitima nos códigos Penal e Civil. Violentos crimes passionais eram (e infelizmente ainda são) cometidos por muito menos. Normalmente praticados por homens fracos e covardes. Bentinho era um homem fraco e covarde. A vivaz e corajosa Capitulina, que terminou o romance exilada na Europa, poderia, por pouco, ter sido vítima da covardia e fraqueza do marido.  

Agora, meninas e meninos, vou indo. Começo a ouvir ao longe o clarão das tochas e gritos da turba enfurecida que se aproxima, disposta a lavar suas honras de leitores sensíveis com meu sangue herético…  

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.