De quando em quando, fatos históricos tornam-se alvo do escrutínio público de pesquisadores e artistas depois que vêm a lume dúvidas até então relegadas ao silêncio quase eterno do passado. Com “Tempo de Glória”, Edward Zwick ajuda a corrigir dados equivocados e as inferências que deles florescem a respeito de uma quadra nebulosa da história dos Estados Unidos, desconhecida inclusive por muitos de seus cidadãos. O recorte da Guerra Civil Americana (1861-1865) sustentado pelo diretor evidencia, naturalmente, o desarranjo institucional motivado pela discordância quanto a se preservar ou não o regime escravocrata; entretanto, Zwick aprofunda-se numa questão bastante específica. A participação de soldados negros é ainda tratada como pouco mais que uma curiosidade — e o filme foi lançado em 1989! —, e por conseguinte os grandes personagens que deram a vida não só pela libertação dos escravos como pela instituição da luta dos afro-americanos por justiça social e igualdade de direitos, que se estende até os nossos dias.
Na introdução, a câmera percorre os precários alojamentos dos soldados em Antietam Creek, Maryland, no nordeste americano, e os enquadramentos sempre muito arejados de que o diretor faz uso deixam que o público se aproxime o quanto pode da história. Por outro lado, o roteiro de Kevin Jarre, cheio de reviravoltas, dedica-se em boa parte a enaltecer o vulto de um homem branco, escolha que, por mais acertada que seja, provoca justificadas controvérsias. Comandante do 54º Regimento, um pelotão formado apenas por negros, Robert Gould Shaw (1837-1963) reveste-se da aura imortal dos grandes heróis — ao menos no começo da história. O jovem coronel vivido com arrojo por Matthew Broderick levanta dos mortos exaltando a coragem e o espírito humanista de Abraham Lincoln (1809-1865), que se passou à história como outro branco visceralmente imbuído da libertação dos homens e mulheres negros da América. Em se levando em conta a pletora de informações a fervilhar no texto de Jarre, os 122 minutos de projeção até parecem um milagre — deveriam ser ao menos o dobro. Zwick encaminha seu filme para o argumento central dando passagem à figura mitológica de Frederick Douglass (1818-1895), considerado o pai do movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, e Thomas Searles, sobre cuja veracidade histórica não se pode cravar nada de muito sólido. Searles, a personificação do negro culto, politizado e lhano nos modos, é um dos pontos altos de “Tempo de Glória”. Defendido — e esse é um termo que cabe à perfeição aqui — por Andre Braugher, o personagem resta desperdiçado, servindo apenas de gancho para a que se chegue a outras lideranças do exército de Shaw, que chegou a contar com 180 mil homens. Mas aqui discrepâncias de ordem dramatúrgica se impõem.
Um dos melhores atores de seu tempo, a performance de Denzel Washington como Trip é decerto das grandes boas surpresas de “Tempo de Glória”, mas não a ponto de lhe ter valido o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. Com menos tempo de tela que o tipo interpretado por Braugher, o escravo fugido, arrogante e violento de Washington só brilha mesmo em dado ponto, entre o segundo e o terceiro ato, quando Searles já voava em céu de brigadeiro. Pensar em tamanha injustiça, sobretudo num filme com essa temática, tira-me um pouco da graça do enredo, e tanto mais se se considerar também o desempenho de Morgan Freeman como John Rawlins, homônimo perfeito do ex-secretário de Guerra dos Estados Unidos, espécie de entidade que guia a conduta daqueles jovens um tanto impetuoso além da medida. O empenho de homens como Shaw, Braugher, Rawlins e Trip, nessa ordem, não foi o bastante para evitar a carnificina que se abate sobre o 54º em 18 de julho de 1863. Não obstante, historiadores reconhecem nessa derrota o começo do fim da escravidão em território americano, que como aqui, se deu muito depois da proclamação da Independência.
Filme: Tempo de Glória
Direção: Edward Zwick
Ano: 1989
Gêneros: Drama/Guerra
Nota: 9/10