Baseado em fenômeno que vendeu milhões de livros, novo romance da Netflix mostra que o amor é incontrolável Divulgação / Netflix

Baseado em fenômeno que vendeu milhões de livros, novo romance da Netflix mostra que o amor é incontrolável

A literatura universal é plena de trabalhos que se debruçam sobre a infelicidade de homens e mulheres — e aqui a ordem dos fatores definitivamente não altera o produto, mormente nas relações, digamos, alternativas deste nosso século 21 — em casamentos perfeitos (da porta da rua para fora). Em “Esta Noite, Você Dorme Comigo”, recorte a um só tempo amplo e íntimo da vida de um casal, um homem se depara com uma mulher ávida por recobrar o tempo em que era forçada a optar ou pela carreira ou pela harmonia do lar — como tantas outras que muitas vezes acabavam no sereno, correndo contra o relógio para dar conta de filhos, casa, marido, carreira, sem admitir que algum desses santos aparecesse descoberto em favor de outro, o que, por óbvio, acontece e é absolutamente natural. Quase sempre, a variável masculina dessa intrincada equação observa todo o processo do alto de sua arrogância psicopática, torcendo contra, sem notar que andorinhas solitárias não fazem verão e que quanto maior a altura, mais chance aquele que se acidenta tem de ir parar na gaveta, segundo a voz rouca das ruas.

Robert Wichrowski transita bem de narrativas eminentemente fantásticas para as que propõem um registro o mais realista possível da vida como ela é, em especial entre quatro paredes. Se “The Son of Snow Queen” (2017) prescinde de maiores delicadezas ao tratar dos malabarismos éticos de uma mãe jovem e pobre que só pensa no melhor para o futuro de seu filho pequeno, neste seu filme mais recente o diretor lança mão de toda a prudência que consegue a fim de esmiuçar o complexo dilema de sua personagem central. Nascida da pena da escritora polonesa Anna Szczypczyńska, Nina não chega a perder a compostura em nenhum momento e conserva a lhaneza, sobretudo no trato com as filhas, Lena e Zuzia, mas sua agonia é palpável. Roma Gąsiorowska desvela o espírito angustiado da protagonista abusando de uma fisionomia permanentemente crispada, olhos arregalados e baços, roupas sisudas demais e largas em excesso, apesar de coloridas, e cabelos muito curtos que poderiam ser definidos só como práticos, mas dão-lhe uma aparência meio varonil. O que há de malresolvido no passado de Nina não é propriamente um segredo; todavia, a forma como Wichrowski trabalha o argumento principal da história, por seu turno muito bem esmiuçado no primeiro tratamento do roteiro de Anna Janyska, não permite que o público se desinteresse pelo enredo, mormente quando da tessitura do anticlímax mais voraz.

Gąsiorowska mostra-se no pleno domínio da personagem, exatamente como pede a narrativa de Szczypczyńska. Aos poucos, o diretor faz com que Nina abra a guarda e se ocupa de temas secundários, mas ainda assim prementes como etarismo — sempre mais perverso para a mulher do que para o homem — e a ubíqua sobrecarga que fustiga ombros e corações femininos. Numa quadra já difícil da carreira como jornalista, Nina não só reencontra Janek, o publicitário com quem tivera um caso tórrido há alguns anos, como tem de se adaptar à nova realidade de tornar-se sua colega no projeto de uma campanha voltada à “reconexão erótica”, a ser veiculado nas redes sociais. Maciej Musiał e Gąsiorowska estabelecem uma parceria sólida mesmo nas passagens em que já se desconfia que o mel não tarda a mudar-se em vinagre, especialmente no transcurso da grande reviravolta do filme, encabeçada por Maciek, o marido de Nina vivido por Wojciech Zieliński.

Nina e Janek, esse casal no contrafluxo, só não supera a inadequação que a protagonista sente numa solidão que dói em quem a assiste   contemplando o mar contra a rocha na última sequência. Ela poderia ter feito diferente, se outra tivesse sido a vida. Mas mil vidas não bastariam para um amor como o seu.


Filme: Esta Noite, Você Dorme Comigo
Direção: Robert Wichrowski
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.