Fui matar pães-de-queijo na lanchonete Tia Nair, no centro da cidade, e dei de cara com o Rimeda Ziul encarando uma foto estilizada, multicolorida, de uma caveira humana, na capa de uma edição limitada de Hamlet.
— Ser ou não ser, Vencio?
— Não sei.
— Não sabe o que?
— Ora, deixe de onda e me pague um lanche, Rimeda. A gráfica ainda não entregou os meus livros.
De tão estranha, vida de escritor até parece ficção. Macambúzio como jamais o tivera visto, Rimeda Ziul enfiou o pocket book dentro da sua mochila de professor lascado e me contou que andava tristonho. Celerados tinham invadido a sede da Associação dos Escritores no feriado de carnaval. Durante a vistoria, após o arrombamento, que mais pareceu o reconhecimento do cadáver de um ente querido numa funerária, Rimeda Ziul descreveu que todo o mobiliário estava de pernas para o ar, inclusive, a famosa estatueta da Marilyn Monroe com a saia arribada por causa de um tufo de vento proveniente do metrô, esculpida em pedra sabão, por Omo, o incensado artesão maneta viciado em divas do cinema e punheta, o qual tinha morrido de inanição, com os olhos pregados na nuca, no verão passado.
Na junção do intrincado quebra-cabeças, os peritos criminais atestaram que a mancha no tapete parecia mingau, mas, não era mingau, era Ki-Suco de pau.
Parece comédia, mas, é drama. Os larápios levaram pertences eletrônicos miúdos da associação, nada de grande valor pecuniário. O que mais incomodava, contudo, era saber que pessoas desautorizadas tinham quebrado a porta, invadido o casebre e, até mesmo, defecado sobre a primeira edição de “Tropas e Boiadas”, de Hugo de Carvalho Ramos, que eu jurava fosse da autoria de Bernardo Élis. Não vinha ao caso.
O assalto dos malfeitores guardava similaridades com a intempestiva invasão de cloacas e intestinos grossos aos prédios dos podres poderes em Brasília, pelos radicais da extrema-direita acometidos de cólon irritável. Acreditava-se que os gatunos tivessem permanecido no local durante várias horas, tendo em vista que abandonaram utensílios, como colheres de sopa e caçarolas amassadas, usados para derreter drogas sobre a fervura de uma trempe improvisada com as esculturas de Veiga Valle.
As incontáveis fileiras de livros da biblioteca escaparam ilesas do atentado. Presumia-se que os assaltantes desconhecessem que o bem mais precioso daquele nobre reduto da cultura estava guardado, para quem se dignasse a ler, dentro de livros e de brochuras estacionados sobre as estantes.
— A vida é feita de instantes — para consolá-lo, plagiei um escritor medíocre cujo nome não me lembrava. Esses invasores são apenas pobres diabos levando uma vida de merda — completei, sem encontrar palavras mais empáticas, mais dignas e mais decentes para descrever a escabrosa situação de homens e mulheres que moravam nas ruas, a maior parte deles, cidadãos viciados em álcool, solidão, desencanto e outras porcarias.
Na verdade, quem não sabia viver era eu. De qualquer forma, de acordo com o senso geral, não seria necessário sequer fazer o ENEM para depreender que os livros não valiam lá grandes coisas para quem tinha fome de comida e de justiça. Destarte, em todos os sentidos, os meliantes pisaram na bola. Podiam ter aproveitado o ensejo da fúria, da doideira e da desumanização sumária para levar toda carga possível de livros que os braços conseguissem carregar, a fim de limpar os próprios fiofós em escalas diarreicas ou, quem sabe, até mesmo, utilizar o fofo papel impresso como combustível para os fogareiros de entorpecentes.
Passados o susto e a tremedeira, além de um dia inteiro metido em faxinas, entrevistas e depoimentos numa delegacia de polícia, Rimeda Ziul mostrava-se por demais combalido emocionalmente, abismado com o crescente estado de coisas que expunham um Estado falido e uma sociedade injusta, cruel, egoísta e adoecida. O excremento, ou melhor, o incremento das ondas de intolerância e de violência tinham transformado o país num verdadeiro octógono de bestas quadradas que defendiam o indefensável e que se orgulhavam da própria ignorância. Roteiros para a literatura fantástica, para a distopia e outros desvarios.
— É como tomar um soco no queixo, Vencio — queixou-se Rimeda, com os olhos baços, olvidados de lágrimas, a desperdiçar tostões do inquestionável talento literário que possuía, para construir uma metáfora deprimente dentro de uma charmosa lanchonete de travessuras e de gostosuras situada no centro da capital.
O professor Rimeda Ziul era um escritor de mão cheia, de olhos esverdeados e presidia a entidade, cuja sede fora aviltada pelos vândalos. Mais melancólico do que um boi que aguardava no tronco a sua vez para ser sacrificado, aproveitou o encontro casual para me convidar para um abraço simbólico no casebre art deco que servia como sede da associação de literatos e de poleiro para pombos cagalhões.
— Estou inadimplente desde o século passado, presidente. Nem sei por que ainda não me protestaram.
— Isso não importa, Vencio. Compareça. Sua presença é importante.
— Importante é caprichar no cardápio. Se servirem o tradicional coquetel de rissoles frios para lançamentos de livros, pode contar com a minha ausência — eu falei, a garimpar um riso na lavra tristonha do seu rosto gentil.
Valendo-se da reputação de ótima anfitriã, tia Nair, a dona do negócio, aproximou-se da nossa mesa, recomendou um bom dia e pesquisou se o lanche servido quentinho estava no nosso agrado. Para judiar da velhota, respondi que eu preferia a morte servida fria e em pedaços.
— E a vida como está, meu filho? — ela me perguntou, depois de gargalhar de forma desvairada.
— Menos saborosa que os lanchinhos que a senhora serve aqui pra gente, tia. Entretanto, para ser honesto, apesar de todos os percalços, a vida anda palatável, na medida do impossível.
Todos sorriram, inclusive, a psicodélica caveira humana que jazia, desconcertada, no fundo da mochila surrada, sem saber ao certo como responder sinceramente, sem fazer rodeios, à instigante pergunta que o intelectual amargurado, Rimeda Zuil, fizera no início dessa história real baseada em fatos sonhados numa noite de verão.