Meninas e meninos, eu vi o pêndulo, e também li o magnífico romance “O Pêndulo de Foucault”, do demiurgo italiano Umberto Eco. Certamente não é o melhor livro que li, mas, com certeza, é um dos livros da minha vida. Meu primeiro contato com a obra ocorreu na adolescência e nunca mais parei de revisitá-la. Foi uma locomotiva de ironia, referências borgeanas e citações eruditas que me atropelou, modificando radicalmente minha visão de mundo. Se o tema de minha tese de doutorado em História foram os Cavaleiros Templários portugueses, não tenho nenhuma dúvida de que a origem desse interesse está nas conspirações templárias que Umberto Eco apresentou em seu segundo romance.
“O Nome da Rosa”, lançado em 1980, foi um projeto inusitado na trajetória intelectual de Umberto Eco. Imaginando ter se esgotado como ficcionista, não planejava aventurar-se em mais uma aventura literária. Com o passar dos anos, “O Nome da Rosa” estabelecia-se como seu “Cidadão Kane” particular, a icônica obra de estreia que nunca seria superada. De fato, foi um grande feito técnico. Escreveu-o unindo seus vastos conhecimentos de crítico literário e medievalista, gigantesca capacidade de trabalho e intuição de leitor voraz. Trata-se, acima de tudo, da montagem de um complexo mosaico estético. Eco gastou tinta, dedos e cérebro para escrevê-lo, não sangue, suor e lágrimas.
Quando finalmente decidiu fazer um novo romance, sentiu-se instigado a escrevê-lo em um registro mais íntimo. Se a centelha inicial de “O Nome da Rosa” foi o desejo de envenenar um monge, seu segundo romance nasceu de duas obsessões: o pêndulo exposto no Conservatoire des Arts e Métiers em Paris, que representa o único ponto fixo do universo, e uma corneta que tocava quando criança. O resultado foi “O Pêndulo de Foucault”, lançado em 1988, uma história sobre mistificações, buscas e memórias. A trama é tão sofisticada que descobrir o verdadeiro nome de Deus é apenas o começo.
Em “O Pêndulo de Foucault”, Umberto Eco chegou ao ápice de sua principal habilidade literária, a criação de personagens carismáticos. O trio de editores que protagonizam a trama, Belbo, Diotallevi e Casaubon, parecem que vivem, respiram e fazem barulho quando andam, de tão reais e densos psicologicamente. O espantosamente erudito e excêntrico Agliè, ainda que tenha algo cartunesco de vilão de 007, merece destaque na galeria de melhores antagonistas das últimas décadas. As principais personagens femininas do romance, Lia, Lorenza e a brasileira Amparo, estão entre as três mulheres mais interessantes da literatura contemporânea. Se meu primeiro amor literário foi a fofíssima menina Polyana, Lia foi o segundo. As cenas em que humilha intelectualmente Casaubon, seu marido, são hilariantes.
“O Pêndulo de Foucault” não obteve o sucesso crítico e editorial esperado. Jamais foi reconhecido como o grande livro que é, mesmo entre os admiradores mais fervorosos do autor. Muitos acham a leitura complexa e rocambolesca, preferindo livros posteriores em que dilui seu estilo e imita a si mesmo, como os medianos “O Cemitério de Praga” e “Baudolino”. De fato, algumas partes acumulam tantas camadas de erudição que se tornam impenetráveis aos menos atentos. Porém, quem enfrentar as infindáveis citações sobre a Árvore Sefirótica, mapas quinhentistas, a Mônada Hieroglífica de John Dee e outras coisas do tipo vai poder se deliciar com passagens empolgantes, líricas e engraçadas. É um livro que exige entrega. O começo vai parecer difícil, mas, quando engrenar, os personagens se tornarão amigos dos quais não vai querer se separar.
Minha questão hamletiana pessoal é a seguinte: “O Pêndulo de Foucault” é melhor do que “O Nome da Rosa”? Racionalmente sei que não é. A carpintaria literária de “O Nome da Rosa” é impecável, enquanto “O Pêndulo de Foucault” se perde e se alonga desnecessariamente em vários momentos. O enredo de “O Nome da Rosa” é coeso, equilibrado e autocontido, enquanto “O Pêndulo de Foucault” parece querer abraçar o universo e apresenta algumas incomodas coincidências e inverossimilhanças. Cada personagem de “O Nome da Rosa” possui seu lugar e sua função na trama, enquanto “O Pêndulo de Foucault” parece uma lista telefônica de tipos que aparecem e desaparecem sem muito sentido. Mas não é assim a vida? Apesar da perfeição técnica de “O Nome da Rosa”, tenho uma predileção visceral por “O Pêndulo de Foucault” porque, estranhamento, seus defeitos mais evidentes parecem-me fazer todo sentido dentro da proposta de sua narrativa. Há método na loucura. Prova disso é sua cena final, de uma beleza fatal e esmagadora.
Em “O Pêndulo de Foucault”, Umberto Eco apresentou seus melhores momentos como estilista. Talvez a resposta para meu dilema seja que se em “O Nome da Rosa” Umberto Eco provou ser um dos grandes artesões da literatura contemporânea, em “O Pêndulo de Foucault” mostrou que, se tivesse se esforçado, poderia ter sido um dos maiores escritores dos séculos 20 e 21. Não foi. Preferiu ficar rico, muito rico escrevendo, ou só emprestando seu nome, para obras cada vez mais irrelevantes. Quem pode criticá-lo por isso? Talvez tenha acabado seu sangue, seu suor e suas lágrimas.
Livro: O Pêndulo de Foucault
Autor: Umberto Eco
Tradução: José Colaço Barreiros
Páginas: 720 páginas
Editora: Record
Nota: 10/10