Enredos que tocam o sobrenatural, o que paira um metro acima das nossas cabeças enchendo o ambiente de tensão e alguma magia, o que não se vê, mas não se pode deixar de sentir, ora fazem brotar do mais escuro do homem suas idiossincrasias menos óbvias e quase luminosas, ora levam-no para os recantos ainda mais funestos de sua alma, lançando-o num cenário tumultuoso, perverso, pleno das revelações que ele mesmo não suporta. “Fantasma e Cia”, no entanto, transcende a regra. Flanando pelo terror apenas como pretexto para anunciar outras intenções, o filme de Christopher Landon está sempre a um passo de confundir o espectador, que por seu turno não parece assim tão preocupado em se resguardar quanto a possíveis decepções, até porque Landon construiu uma reputação bastante sólida. Houve outras vezes em que também ousou aventurar-se pelo terror festivo, conforme se assiste em “A Morte Te Dá Parabéns” (2017), “A Morte Te Dá Parabéns 2” (2019) e “Freaky: No Corpo de Um Assassino” (2020), todos muito bem recebidos pela crítica e ainda mais pelo público.
Não é para menos. “Fantasma e Cia” tem defeitos (já chego neles), mas Landon maneja bem todos os recursos técnicos de que dispõe a fim de levar seu roteiro para onde imagina ser seu lugar, a abordagem social do desajustamento de uma família diante das intempéries pelas quais todos nós passamos. Percebe-se uma certa influência envergonhada de um dos mestres do freak logo na introdução, quando o diretor-roteirista emula o estilo de Tim Burton para situar a audiência. Uma lua cheia muito gorda e muito brilhante, dessas de cinema mesmo, ombreia com uma casa grande e malcuidada numa rua silenciosa. No dia seguinte, à luz do sol, um homem, a esposa e os dois filhos adolescentes são recebidos por uma corretora disposta a tudo para desfazer-se do imóvel, até mesmo oferecer um desconto bastante significativo, ainda que a casa precise de uma verdadeira força-tarefa. A Melanie, a metade sensata do casal Presley, cabem essas minudências de adultos uma vez que Frank está sempre muito ocupado tendo ideias geniais para ganhar muito dinheiro, todas fracassadas. Erica Ash e Anthony Mackie compõem uma boa dupla revezando-se no posto de escada e figura central dos diálogos, até que o taciturno Kevin, de Jahi Di’Allo Winston, resolve deixar a letargia em que se abandonara, aplacada por uns poucos solos de guitarra sem muito refinamento, e começa a dar seus pitacos sobre a postura de Frank, um pai nada exemplar. A presença de Fulton, o irmão mais velho interpretado por Niles Fitch, subaproveitado, ameniza a acrimônia do olhar baço do personagem de Winston, e ao cabo da primeira reunião dos Presley, melancólica e em meio às caixas da mudança recente, Landon entra com toda a força no argumento de seu filme. O espírito de um homem branco mais para velho que para moço na nova propriedade de uma família negra não deixa de ter sua graça, manifestada em algumas tiradas que o diretor vai elaborando com mais rigor à medida que a história ganha substância dramática.
A atuação acurada de David Harbour como Ernest, o fantasminha camarada do conto homônimo de Geoff Manaugh, é o sal da história. Sempre entrando mudo e saindo calado, Harbour se socorre de expressões faciais que poderiam restar incompreendidas, principalmente porque sua imagem surge da forma mais adequada, como um espectro esverdeado e fosco que atravessa paredes e gente investido do realismo que conferem a fotografia de Marc Spicer e os efeitos especiais de uma numerosa equipe. Landon vai trabalhando o surrado clichê do medo frente ao desconhecido acrescendo a narrativa com inserções de vídeos nas redes sociais postados pelos milhares de perfis que visualizaram o registro de Ernest — que, na verdade, tem outro nome, como se assiste na iminência do desfecho —, feito por Kevin, mas liberado por Frank, quem mais? Assuntos como xenofobia, racismo, religião, política, obscurantismo intelectual, negacionismo científico e até as perenes injustiças do capitalismo, estas de modo um tanto oportunista, vêm à baila representados por Joy, a nova amiga de Kevin vivida por Isabella Russo, e Judy Romano, a médium pop de Jennifer Coolidge, impagável.
Fica no ar em dados momentos um racismo às avessas, mormente em comentários pontuais e desnecessários dos personagens de Ash e Mackie, o que acaba por estorvar o andamento de “Fantasma e Cia” em momentos-chave. Landom contorna a questão investindo no carisma de Harbour e Winston, uma dupla improvável cuja química segura os lances instáveis do filme, uma história de fantasmas tão atormentados quanto os que estamos deste lado da vida.
Filme: Fantasma e Cia
Direção: Christopher Landon
Ano: 2023
Gêneros: Aventura/Comédia
Nota: 8/10