Há aspectos grandiosos na maneira como Steven Spielberg realiza seu trabalho. Seu faro para o sucesso, derivação da sensibilidade a toda prova que o torna capaz de canibalizar o espírito do tempo e saber de pronto do que o público se ressente, do que gosta, com o que quer se deparar num filme, aliado à facilidade de transformar histórias flagrantemente inusitadas, até absurdas, em fenômenos da indústria cultural — e, claro, minas de ouro inesgotáveis — consolidaram Spielberg como um diretor tão irrequieto quanto rentável, e seu grande mérito foi ter a sagacidade de, além de não se permitir encantar cegamente nem pela estética nem pela bilheteria, valer-se daquela para chegar a esta. “Jurassic Park – Parque dos Dinossauros” é o segundo dos grandes campeões de audiência de Spielberg, trajetória iniciada em 1975 com o avassalador “Tubarão”; dezoito anos depois, o diretor torna a dar vida não a uma, mas a dezenas de criaturas monstruosas, ainda mais furiosas e muito mais incontroláveis, velhos donos do mundo ansiando por desbancar o homo sapiens e voltar ao trono, ajudados pelo próprio homem.
Spielberg verte em imagens poderosas o roteiro de Michael Crichton (1942-2008) e David Koepp, sem que o conteúdo das histórias publicadas por Crichton na primeira metade dos anos 1990 se perdesse, o que, como era de se esperar, foi acontecendo à medida que “Parque dos Dinossauros” deu à luz seus filhotes. Enredos caudalosos como o deste filme, cheios de muitas possibilidades narrativas, cada qual desdobrando-se em outras tantas abordagens semióticas, comportam quase tudo quanto se queira — bem como abrem alas para que muitos personagens despontem — e o roteiro de Crichton e Koepp leva essa regra a sério. Os dois apresentam ao público a ilha Nublar, dos poucos elementos narrativos que resistiram a três décadas de novos enxertos, costuras, amputações e apêndices que deram origem a um Frankenstein muito mais assustador que as feras pré-históricas e coléricas de que Spielberg fala aqui — malgrado Colin Trevorrow tenha podido recobrar boa parte da magia inaugural com “Jurassic World — O Mundo dos Dinossauros” (2015), até nas cenas em que a personagem de Bryce Dallas Howard vai ao socorro dos sobrinhos, nada originais, mas semanticamente imbatíveis. É nesse pedaço de mundo que John Hammond, um irlandês que fez a América a partir de um circo de pulgas e um invulgar tino comercial, instala seu parque, a despeito dos maus olhos dos investidores e do desabrido menoscabo da comunidade científica. Para conseguir que o negócio se viabilize mesmo, Hammond, na presença sempre calorosa e atenta de Richard Attenborough (1923-2014), desloca para seu éden particular (e demoníaco, como todos sabemos) Donald Gennaro, o advogado dos patrocinadores vivido por Martin Ferrero, além da paleobotânica Ellie Sattler, interpretada por uma Laura Dern quase rescendendo a leite; o arqueólogo Alan Grant, papel do menos fresco, mas conservado Sam Neill; e o geneticista Ian Malcolm, de Jeff Goldblum, o galã possível.
Os problemas começam pouco depois que Sattler, Grant e Malcolm são recepcionados por uma manada de braquiossauros pastando num imenso campo de sequoias gigantes, decerto a sequência mais bonita e poética de “Parque dos Dinossauros”. É impossível não se abater pela melancolia dos bichos, redivivos num mundo a que não mais pertencem, feito canários mudos numa gaiola de ouro. Um segmento ainda hoje bastante didático e indelével — sobretudo para os meninos asmáticos de dez ou onze anos que assistiram ao filme in loco no jurássico Cine Karim — explica como se deu o milagre: os cientistas do parque extraíram o DNA de um dinossauro, presente no sangue de que se alimentou um mosquito conservado em âmbar (por 65 milhões de anos!), e preencheram as falhas da sequência, esperadas devido ao grande salto cronológico, com o material genético de batráquios. Esse é um pormenor fundamental para que se entenda por que mesmo gerando somente fêmeas a produção saiu de controle.
Como se se vingassem do perverso gênero humano, sinistro a ponto de interromper um sono quase tão velho quanto o próprio mundo, os dinossauros perseguem Sattler, Grant e Malcolm e Gennaro, e mais Tim e Lex, os sobrinhos de Hammond vividos por Joseph Mazzello e Ariana Richards. Entre um e outro apuro, Spielberg põe na boca de seus personagens as elaborações filosóficas que hoje parecem óbvias como a luz que banha o litoral da Costa Rica, de onde saem como cachorros magros depois de destruir o sofá. “Eu não poupo despesas”, diria o personagem de Attenborough. E a natureza não nos poupa.
Filme: Jurassic Park — Parque dos Dinossauros
Direção: Steven Spielberg
Ano: 1993
Gêneros: Ficção científica/Aventura/Terror/Ação
Nota: 9/10