Coragem, seu nome é mulher. Esse decerto é dos lemas de Greta Gerwig, diretora de “Adoráveis Mulheres”, sucesso desde 1868, quando a história de quatro destemidas irmãs, cada uma a seu modo, veio a público pela primeira vez, sob a forma de romance. Há 150 anos, a pena de Louisa May Alcott (1832-1888) reverbera o anseio feminino por liberdade, mais ainda, por independência, e em 2019, Gerwig é uma portadora à altura da mensagem que Alcott quis transmitir. Lamentavelmente, certos assuntos continuam na ordem do dia.
“Adoráveis Mulheres” já foi série de televisão, já virou peça de teatro, e tomou a forma de longa-metragem por duas vezes, sendo uma ainda durante o cinema mudo, em 1933 — dirigida por George Cukor (1899-1983) e com Katherine Hepburn (1907-2003) no papel de Jo March, que coube a Saoirse Ronan na reconfiguração de Gerwig —, e seis décadas depois, em 1994, sob a batuta de Gillian Armstrong. “Adoráveis Mulheres” prima pela novidade? Por óbvio que não, mas assim mesmo encanta: dotada de um senso estético raro, a diretora foi a rainha do mumblecore, gênero que congrega os filmes de baixo orçamento, dispondo de colaborações de peso, a exemplo de Noah Baumbach, de “História de um Casamento” (2019). Há uma grande ironia aí. Gerwig e Baumbach são casados, e bem casados, e em 2020 deram uma prova cabal de que protagonizam uma relação tão saudável que nem a concorrência no Oscar, na principal categoria, a de Melhor Filme, separou os pombinhos. Como se sabe, o vencedor foi o sul-coreano “Parasita” (2019), de Bong Joon-ho. Em 2010, Kathryn Bigelow e James Cameron também disputaram a preferência da Academia com “Guerra ao Terror” e “Avatar”, respectivamente, mas já estavam separados há quase vinte anos. Bigelow levou as estatuetas de Melhor Filme e Direção.
Em “Adoráveis Mulheres”, Greta Gerwig sabe como situar uma narrativa de século e meio atrás na rapidez da contemporaneidade, que pode ferir de morte o espírito dessas histórias. Gerwig tira o livro de Alcott da bruma do tempo valendo-se de flashbacks nos momentos certos, o que provoca o contraste marcado entre as sequências em que a forte carga de emoção é imprescindível com os líricos, às vezes até românticos. É sabido que adaptações cinematográficas para textos literários são quase unanimidade quanto a não agradar nem a quem assiste e tampouco a quem já leu, mormente os mais puristas de lado a lado, contudo a diretora tem o condão de elaborar guinadas nada simplórias ao longo de 135 minutos.
A natureza libertária do quarteto de irmãs-protagonistas Jo, Meg, Amy e Beth March está integralmente preservado, com destaque para a personagem de Ronan, narradora da história, não por acaso indicada ao Oscar de Melhor Atriz pelo papel. Uma nova Meryl Streep — também no elenco, como uma tia carrancuda sem muita chance —, “Adoráveis Mulheres” lhe proporcionou a quarta indicação ao prêmio máximo do cinema e, pelo visto no longa de Gerwig, sua hora vai chegar logo. Decerto a mais arrojada das March, Jo serve de alter ego a Alcott. O filme a apresenta não em sua New Hampshire natal, um túmulo de vocações artísticas, mas como a abnegada moradora de uma pensão em Nova York, empenhando todas as fichas no sonho de se tornar escritora. Jo sai pelas ruas da metrópole com o calhamaço original de seu trabalho, peregrinando por algumas editoras, até que dá de cara com o editor vivido por Tracy Letts, que aprecia seu estilo, mas a adverte que provavelmente morrerá no anonimato se não incluir nos seus desfechos de seus romances a palavra casamento e todas as ideias tacanhas, perversas, já àquela época obsoletas que ele encerra: renúncia à dignidade, à individualidade, ao sonho de uma carreira, à felicidade, enfim. Nessas andanças, conhece também o professor Bhaer, de Louis Garrel, que avalia seu estilo do ponto de vista estético, tece alguns comentários tão mordazes que fariam qualquer outra pessoa esmorecer, mas é um intelectual digno desse nome, e por essa razão, Jo abre a guarda.
Com cuidado, Gerwig vai incluindo na história, amparada no roteiro coescrito com Sarah Polley, as outras três irmãs, suas aspirações com o amor, mediante o matrimônio ou não, o choque com a família provinciana, a inadequação com uma vida que nem parece ser verdadeiramente delas. Personagens masculinos, resta claro, não são o forte do filme, mas Laurie, o ex-vizinho dos March do sempre arrebatador Timothée Chalamet, é um caso à parte. Parecendo o mesmo garoto desprotegido de papéis como Elio, de “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), dirigido por Luca Guadagnino, Chalamet consegue, com seu cabelo menos desgrenhado, roubar a cena e o coração das March ainda que o destino o aparte ainda mais delas.
Fiel à pena arguta de Louisa May Alcott, que escolhe priorizar o núcleo dos March, e se estender sobre a natureza da relação entre aquelas pessoas, seus afetos e conflitos, e relegar a segundo plano a Guerra de Secessão (1861-1865), que se presta a pano de fundo histórico, Greta Gerwig narra as desventuras de uma garota que se apaixona sem, no entanto, se dispor a sacrificar o sonho de sua vida a fim de viver essa paixão. Jo é uma mulher, que como 150 anos atrás, sofre por amor e por não amar. Da mesma forma que continuam a sofrer hoje.
Filmes: Adoráveis Mulheres
Direção: Greta Gerwig
Ano: 2019
Gênero: Drama/Coming-of-age/Romance
Nota: 9/10