Os poetas sempre chegam antes dos outros. Percebem o que está se formando e ainda não mostrou a cara definitiva. São indícios, pequenos traços, que só anos mais tarde assumem forma explícita. Relançado em 2023, o livro “Mário e o Mágico” (1930), de Thomas Mann, faz parte da galeria de obras que enxergaram o que ninguém viu em certo momento histórico. No caso, o escritor alemão percebeu os movimentos iniciais dos fascistas, em suas viagens constantes à península do Mar Mediterrâneo.
A nova edição do livro traz um alentado e excelente posfácio de Marcus Vinicius Mazzari para contextualizar o tempo e o espaço da história — o ideal é ler esse texto após a leitura da narrativa de Mann. “Mário e o mágico” pode ser considerado um conto longo ou uma novela. A forma breve era uma especialidade do escritor alemão, haja vista o clássico “Morte em Veneza” (1912), também ambientado na Itália. Uma escrita profunda e enxuta que nada fica a dever aos grandes romances do autor.
O estalo para a história do mágico demoníaco veio de uma viagem de Mann com sua esposa e filhos à costa italiana. No livro, a cidade recebeu o nome de Torre di Venere, onde europeus de vários pontos buscariam o calor para férias: “Os idiomas inglês, alemão, francês reinam debaixo das tendas das cabanas e nos refeitórios das pensões”. De saída, o narrador anônimo descreve aquele local movimentado, com seus hotéis, cafés, e atrações de porte do “terrível Cipolla”, o mágico, o ilusionista ou o prestidigitador.
O que chama a atenção do narrador é o comportamento dos italianos, já sintonizados ao espírito da época, a virada dos anos 1920 para os 1930. Thomas Mann captura pequenos gestos e situações. “A praia fervilhava de crianças patrióticas — um fenômeno artificial e degradante. As crianças constituem uma espécie humana, uma sociedade em si mesma, uma nação própria, por assim dizer.” O uso fascista da infância vai aparecer anos mais tarde, magistralmente, no filme “Amarcord” (1973), de Frederico Fellini.
Os pais dessas crianças não ficavam para trás em termos de desorientação, segundo o narrador: “Os adultos intervinham menos para apaziguar do que para decidir e salvaguardar princípios, soltavam-se máximas sobre a grandeza e dignidade da Itália, máximas mal-humoradas, estraga-prazeres; víamos os nossos dois [filhos] darem meia volta pasmos e atônitos; […] essas pessoas, explicamos-lhes, estavam passando por algo, por uma situação, algo como uma enfermidade”.
Os verdadeiros perversos
Thomas Mann cria um episódio para ilustrar a degradação social que tomou conta da Itália naquele período. Trata-se do trecho da filha do narrador que fica nua na praia e vai até o mar para limpar o maiô sujo de areia. As reações dos italianos no local mostraram o moralismo perverso do fascismo — tão bem exposto nos filmes de Pier Paolo Pasolini, como “Salò ou os 120 dias de Sodoma” (1975). Todo defensor público da moral e dos bons costumes é um depravado na vida privada, um sádico no fundo.
“Um senhor de casaca, o chapéu-coco na nuca (acessório pouco apropriado à praia), assegura a suas senhoras indignadas que estava decidido a passos corretivos; ele vem até nós e nos despeja uma filípica [fala de condenação], no qual todo o páthos do sul sensual está a serviço da disciplina e dos bons costumes. A ofensa ao pudor cometida por nós, disse, era tanto mais digna de condenação por equivaler a um abuso ingrato e ofensivo da hospitalidade italiana. Não haviam sido ofendidos de modo injurioso somente o espírito e a letra das disposições públicas de banho, mas, ao mesmo tempo, também a honra de seu país e, em defesa dessa honra, ele, o senhor de casaca, cuidaria para que a nossa violação da dignidade nacional não permanecesse impune.”
Em trechos como este, a narrativa Mann vai expondo o quanto estava consolidado o terreno para o florescimento do personagem Cipolla, o mágico do título. Ele é o sujeito que encanta o senhor de casaca, suas senhoras e a “dignidade nacional”. Os perversos sempre adoram grandes palavras como Moral e Pátria. É o discurso mobilizador (ou a narrativa, como se diz hoje) explorado pelo fascismo e pelo nazismo em meados do século 20. A volta recente desse discurso é uma fantasmagoria.
O leitor tem a descrição completa do ambiente e das pessoas que vão ao ponto alto do livro: o show de mágica de Cipolla. Ele nem é uma coisa, nem outra. A ambiguidade é o que predomina. Thomas Mann se detém longamente na figura do mágico: “Envergava uma ampla capa rodada preta, sem manga, com gola de veludo e pelerine forrada de cetim – capa que ele mantinha junto diante de si com mãos calçadas de branco, tolhendo o movimento dos braços –, um lenço branco em volta do pescoço e uma cartola curva, assentada de través sobre a testa”.
A imagem de Cipolla tinha “a impressão de bufonaria publicitária e fantástica inerente à imagem [que] foi despertada pelo próprio fato de que o vestuário pretensioso lhe assentava no corpo — ou nele fora como que pendurado — de forma esquisita”. O narrador acrescenta, dando o tom necessário de ambiguidade do personagem: “Não havia nada de engraçado ou burlesco; expunham-se, antes, rígida seriedade, recusa de todo o humorismo, um orgulho por vezes irritadiço”.
Figura diabólica
A ambiguidade de Cipolla se assemelha à do diabo no livro “Doutor Fausto” (1947), escrito por Thomas Mann durante a Segunda Guerra Mundial. Uma figura que tem a capacidade de se transformar para conquistar ou seduzir os outros. Um diabo sedutor. E o que é sedução? Na tradição fáustica, é a ambição sem limites que vai ter uma aparição nos nazistas. Um dos trechos antológicos do Fausto de Mann está no capítulo 25, no qual o diabo procura o compositor Adrian Leverkühn para realizar um pacto.
O diabo criado por Mann personifica a ambiguidade dureza/suavidade: “Usava colarinho branco, e no nariz adunco, um par de óculos com aros de chifre, atrás dos quais brilhavam olhos úmidos, sombrios, um tanto avermelhados. A fisionomia aparentava uma mescla de dureza e suavidade: o nariz duro, os lábios duros, porém suave o queixo, no qual havia uma covinha, e a esta correspondia outra face; lívida e arqueada a testa, e acima dela os cabelos, com entradas bem definidas, porém densos, negros, lanosos”.
O show de Cipolla oscila do assustador ao cômico. Também se pode dizer algo parecido de figuras como Adolf Hitler e Benito Mussolini — certamente, dois grandes ilusionistas da política. Amigo de Thomas Mann em seu exílio nos Estados Unidos e consultor para o livro “Doutor Fausto”, o filósofo Theodor Adorno dizia que Hitler era uma mistura de King Kong com o barbeiro do bairro, ou seja, um monstro na pele de uma pessoa comum, como os personagens/figurantes de “Mário e o Mágico”.
Ao final do livro, Mann colocou o garçom Mário em primeiro plano. Ele sobe ao palco para um truque humilhante de Cipolla. O desfecho é a sugestão do escritor alemão sobre o que fazer com um fascista. Nos últimos anos, muito se falou a respeito de maneiras para conversar com fascistas ou nazistas do século 21, espalhados pelo mundo afora. Figuras patéticas, clowns por natureza, que falam coisas absurdas, mas que apenas o pobre Mário encontrou uma maneira séria de lidar. Com o diabo/ilusionista, não se conversa.