Última chance para assistir: ganhador de uma dezena de prêmios, drama chileno na Netflix é um diamante bruto Divulgação / Fabula

Última chance para assistir: ganhador de uma dezena de prêmios, drama chileno na Netflix é um diamante bruto

Há um sem-fim de maneiras de se contar as tantas histórias de inadequação, de desajuste, de inconformidade com o vasto mundo que o cerca, com a austera vida que o devasta, com sua própria natureza, de que se esconde, que renega, da qual não pode fugir. Pablo Larraín sabe muito bem aonde quer chegar com “Sinfonia Inacabada”, trama de forte tom sobrenatural em que se esmera na construção de um personagem à procura de autor. Homens nitidamente perturbados e algo coléricos visitam a obra do chileno com frequência, vide “Tony Manero” (2008) e “El club” (2015), mas neste trabalho Larraín parece ter querido fixar-se no que resta por ser dito, como se o que não é revelado constituísse um outro filme, decerto muito mais intenso, porém igualmente muito mais obscuro e aberto a interpretações que contornam o óbvio. Sem dúvida, é esse o grande mérito do diretor aqui, sua habilidade em experimentar e fazer com que também a audiência procure não se convencer do que quer que seja tão rápido, tampouco sem atentar para detalhes que de tão miúdos escapam a vistas mais apressadas.

Antes de começar a pôr em roda seu carrossel de imagens que mesmerizam pela força e pela competência em sugerir conclusões sem jamais corroborar ou refutar nada, Larraín apresenta seu personagem central valendo-se de um texto enxuto, seu e de Hernán Rodríguez Matte e Mateo Iribarren, em que Eliseo Montalbán, o músico em início de carreira vivido por Benjamín Vicuña, revela a maior aspiração de sua vida, a sinfonia grandiloquente que, supõe, jamais fora sequer pensada por ninguém. Primando por um andamento bastante fluido, às vezes até sem um gancho mais musculoso de uma para outra subtrama, Larraín vai encadeando fatos banais do cotidiano de Montalbán, ocasiões em que Vicuña prova-se um intérprete dinâmico, plenamente apto a ir flanando entre as diversas personalidades do tipo exótico que incorpora, como no trecho em que depara-se com Georgina, de Francisca Imboden, a violinista que apresenta na rua com amigos a ária “Fígaro”, de “O Barbeiro de Sevilha” (1816), e ele se imagina como o próprio Rossini, comandando uma orquestra de renome internacional. O diretor move as peças desse tabuleiro com delicadeza, sensível em deslocar o protagonista do mundo real para a cornucópia de universos paralelos que existem dentro de si; é o momento em que, amparando-se num flashback sem alterações da fotografia ou trilhas especiais, anuncia o trauma pelo qual Montalbán passa quando criança, uma das explicações para muito do que se assiste doravante, mas não a única.

As cenas no hospício são o filme dentro do filme. A partir deste segmento, “Sinfonia Inacabada” enfronha-se muito mais ainda no inconsciente do anti-herói de Vicuña, que perde espaço para a performance de Alfredo Castro, carregada de dramaticidade e um bem dosado histrionismo. Claudio, o estereótipo do louco maldito, que reúne quase todos os pecados e anátemas sociais do princípio do século — homossexual, comunista e antirreligioso, nessa ordem —, desperta em Montalbán emoções dicotômicas e faz com que sentimentos essencialmente nobres a exemplo de amor e solidariedade ganhem as cores diabólicas com que Willi Forst (1903-1980) pintara seu recorte biográfico, flagrantemente pessoal, de Franz Schubert (1797-1828) em seu quase homônimo perfeito “A Sinfonia Inacabada” (1933). Alguns problemas de continuidade e um desfecho meio fácil demais eclipsam a genialidade de “Sinfonia Inacabada”, mas também confirmam o próprio título do filme. Não se pode ter tudo.


Filme: Sinfonia Inacabada
Direção: Pablo Larrain
Ano: 2006
Gênero: Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.