Quanto mais o homem vive, mais o acomete a necessidade de estender seus domínios para muito além de suas limitadas possibilidades, e dessa ambição, inocente à primeira vista, eclodem mil desdobramentos, ocorrências colaterais que o fazem chocar-se contra seus próprios sonhos. Tentando contornar os lugares-comuns sobre as humanas aspirações e tudo quanto pode haver nelas de paradoxal, de arriscado, de condenável, “Passageiro Acidental” investe maciçamente em tecnologia a fim de ganhar a confiança do espectador ao passo que vai se encaminhando para outros tópicos do argumento central, nossa eterna fascinação acerca do que não conhecemos. Justamente incensado por “Ártico” (2018), em que narra a luta que o personagem de Mads Mikkelsen trava consigo mesmo e com o meio hostil que o rodeia, o brasileiro Joe Penna amplia o escopo mirando os sobressaltos de uma equipe de astronautas num ousado deslocamento até Marte, frustrada por uma razão decerto implausível, mas apresentada com tamanho realismo que não se cogita refutá-la — não sem antes ao menos contemplar alguns de seus muitos delírios.
Zoe Levenson, David Kim e a comandante Marina Barnett singram pelos confins da Via Láctea numa viagem que, para muitos — sobretudo pelos aficionados por filmes como este —, aproxima-se o máximo possível da ideia de perfeição, de hedonismo, de prazer absoluto. No entanto, já nas primeiras cenas, fica claro que os personagens de Anna Kendrick, Daniel Dae Kim e da onipresente Toni Collette estão muito satisfeitos com o rumo que suas carreiras tomaram, porém, diálogos que brotam numa tela em que ainda são apresentados os créditos comerciais, um grande deslize da edição de Ryan Morrison, apontam para uma pletora de complicações quanto ao bom andamento dos trabalhos. Collette, longe de ser unanimidade, mas inquestionavelmente uma atriz maiúscula, transmite a lucidez dos moribundos ao inquirir a base terráquea sobre a premência de se abortar a empreitada, pousar em Marte com o intuito de pesquisar elementos como solo e clima e assim tirar a prova quanto a uma futura, e quiçá iminente, colonização interplanetária. À medida que a Terra torna-se mais diminuta no horizonte, mais o roteiro de Penna e Morrison aprofunda-se nessas questões de fundo filosófico, com destaque para as elucubrações schopenhauerianas de Kim, que tende a resolver problemas de vulto com soluções um tanto pragmáticas demais. Ele é justamente o fio condutor de uma das melhores das muitas pequenas reviravoltas do enredo, depois que o tal passageiro acidental do título entra na história. Michael Adams, o intruso encarnado por Shamier Anderson, não cai no azul, mas do compartimento que armazena o racionado oxigênio que mantém a tripulação viva, e o diretor-roteirista faz bom uso de sua figura ambivalente, abrigo daquela tão procurada essência da mudança e das revoluções e em igual medida fonte de aniquilação e morte.
Arte nenhuma toma substância sem a cumplicidade de quem a aprecia e com o cinema esse raciocínio agudiza-se um tanto. As críticas acerbas e meio debochadas quanto à permanência de Adams na espaçonave têm razão de ser, mas fico mesmo é com os mecanismos que Penna acha para equalizar os possíveis ruídos em seu filme, e o principal, como quase sempre sói acontecer em filmes dessa natureza, é a fotografia. Klemens Becker absorve essa noção de dispor sentimentos antagônicos e providências cruéis num ambiente claustrofóbico sobre-iluminando o interior dos módulos da nave, mormente nos trechos em que os três astronautas (e depois também Adams) conversam amenidades enquanto engolem a comida meio insossa que se consegue preparar, e abusando dos tons muito escuros e frios de azul e verde nos instantes que registram discussões muito civilizadas que degringolam numa repulsa indomável, como a que se dá entre os personagens de Kendrick e Kim. Há muito de histrionismo e nonsense em “Passageiro Acidental” — personificados em grande parte pelo desempenho irregular de Collette —, mas existe, outrossim, densidade e refinamento estético. Mal comparando, o filme de Penna é um “2001 — Uma Odisseia no Espaço” (1968) em que a falta da genialidade de Kubrick é parcialmente desculpada pelo destemor em ousar.
Filme: Passageiro Acidental
Direção: Joe Penna
Ano: 2021
Gêneros: Ficção científica/Suspense/Drama
Nota: 8/10