“Antes que eu penetrasse no Zen, as montanhas e os rios nada mais eram senão montanhas e rios. Quando aderi ao Zen, as montanhas não eram mais montanhas, nem os rios eram rios. Mas, quando compreendi o Zen, as montanhas eram só montanhas e os rios, apenas rios.” Essa máxima filosófica oriental pode ser encontrada no livro “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen”, de Eugen Herrigel, e sintetiza, em um resumo histórico, a essência da literatura de autoajuda, atualmente muito vendida e difundida. Por definição, essa literatura pretende elaborar um conjunto de opiniões e soluções que farão o leitor pensar em seus problemas e aprimorar habilidades para enfrentá-los e, posteriormente, resolvê-los. Sim, essa literatura é, suficientemente, prepotente e arrogante ao ponto de se eleger solucionadora dos mais diferentes problemas psicológicos, sociais e emocionais. Beber na fonte das pequenas histórias, morais, do oriente, e de seus aforismos impactantes, é uma das suas táticas. Aquele que se propõe a adentrar à senda do entendimento tem que obedecer a algumas regras, não é possível entrar à caverna do conhecimento absoluto mantendo os preconceitos do passado. “Mas tal encontro exigirá, por parte do leitor, algumas abdicações. A lógica do pensamento ocidental deve ser posta de lado. A estrutura do cartesianismo, reduzida a cinzas. A relação causa-efeito, desprezada. A separação sujeito-objeto, ignorada. O tédio, ridicularizado.” E assim, eleito por si mesmo a candidato à iluminação e portando o manual da luz, o neófito pode se dar ao luxo de, com “a paixão pela vida, enaltecida”, desvendar os segredos do universo e deles usufruir.
Raduan Nassar, em seu mais importante livro, “Lavoura Arcaica”, propõe uma desconstrução desse mito. Os aforismos orientais, ou em sua evolução atual, as célebres frases de internet, muitas vezes dedicadas a autores que não as elaboraram, por exemplo um poema superficial de elevação da autoestima, que é atribuído a Jorge Luis Borges, ou frases sobre religião e Deus, atribuídas à Abert Einstein, tornam-se frágeis diante de uma elaboração, no mínimo genial do escritor. Trata-se da parábola do faminto, que é apresentada no capítulo 13 (o número deve ser apenas uma coincidência). O belíssimo conto, incluído na metade do livro, é livremente inspirado em histórias orientais e na bíblia. Nela um velho rei ancião recebe um homem faminto e oferece a ele um banquete imaginário. O homem, em detrimento de sua dor, causada pela fome, para não ofender o anfitrião, simula fartar-se de comidas e vinhos imaginários, como um bom ator. A moral da história, é a seguinte: o rei elege o faminto como a pessoa mais merecedora que ele conheceu, pois carrega em seu íntimo a virtude da paciência. E, por isso, o recebe como morador permanente em sua casa para usufruir de toda a sua riqueza: conforto e comida abundantes.
O autor atropela tudo. Dá uma rasteira definitiva no engodo. Desconstrói a cilada literária. Por meio de sua personagem, ele reelabora a parábola. E faz, com a competência de um grande intelecto, para além da imagem bondosa e imediata que exige a filosofia da autoajuda. Diz: “Como podia o homem que tem o pão na mesa, o sal para salgar, a carne e o vinho, contar a história de um faminto? como podia o pai, Pedro, ter omitido tanto nas tantas vezes que contou aquela história que ele mais contou nos seus sermões; o soberano mais poderoso do Universo confessava de fato que acabara de encontrar, à custa de muito procurar, o homem de espírito forte, caráter firme e que, sobretudo, tinha revelado possuir a virtude mais rara de que um ser humano é capaz: a paciência; antes porém que esse elogio fosse proferido, o faminto — com a força surpreendente e descomunal da sua fome, desfechara um murro violento contra o ancião de barbas brancas e formosas, explicando-se diante de sua indignação: ‘Senhor meu e louro da minha fonte, bem sabes que sou o teu escravo, o teu escravo submisso, o homem que recebeste à tua mesa e a quem banqueteaste com iguarias dignas do maior rei, e a quem por fim mataste a sede com numerosos vinhos velhos. Que queres, senhor, o espírito do vinho subiu-me à cabeça e não posso responder pelo que fiz quando ergui a mão contra o meu benfeitor”.
Raduan é simpático. O faminto poderia desferir um golpe mortal e evitar que o ancião de barbas brancas continuasse testando almas comuns e afligidas pela fome com a sua tese minimalista de que uma pessoa pode ser medida pela sua paciência. Camus avalizaria e diria que a revolta é um direito do homem! Sublime os homens revoltados. Um outro ancião, mais sábio e mais rico, que assistisse ao embuste, diria: venha para o meu reino, tenho mais riquezas e mais comida, numa mesa mais farta, para o homem que, sinceramente, abraçou a revolta.
A parábola presume a simpatia instantânea do sujeito pela doutrina deturpada que se pretende promover. Descarta, categoricamente, um direito digno e essencial, maior do que a virtude da paciência, que é a revolta. A autoajuda é literatura fácil e superficial, Raduan alerta subliminarmente. Ela despreza a complexidade dos seres, sua história, suas oportunidades. O ancião achava que ao oferecer o banquete real descartaria décadas de ausência de dignidade sofrimento e os dois, ancião e faminto, sairiam juntos da prova de fogo desempenhada antes, na qual o esfomeado, o mendigo, se saiu bem, foi aprovado, de mãos dadas, sorridente, garantido ao rei o direito inconsequente e absurdo de testar pessoas em virtude de um capricho, de sua posição e situação abastada. A vida é mais complexa! Não é uma coleção execrável de platitudes dispostas em fila nas folhas de um livro comercial.
Frases prontas, textos otimistas de grandes escritores equivocadamente creditados, aforismos elevados ao quadrado, tudo isso compõe uma literatura que, assim como colchões quânticos, vendem um mundo limitado e superficial, no qual uma força anímica que vem de dentro de cada pessoa é capaz de superar obstáculos fictícios criados pela prosa ensandecida de seus autores. Os livros de autoajuda, supostamente, transformam máximas em um conjunto de verdades para compor um manual de comportamento.
Segue uma outra história oriental, moralista, para encerrar o tema. Julgue, leitor, como quiser: “Um espadachim viaja até um grande mestre da espada. O mestre o aguarda sereno sentado em meditação. Ao ser avisado da presença do viajante ele abre os olhos e pergunta o que o rapaz deseja. O espadachim, sem hesitar, diz que caminhou grandes distâncias para lhe fazer uma pergunta fundamental. Vivia angustiado por não saber a resposta. Sem dizer mais, atirou: Mestre, o que é o inferno e o que é o céu? O mestre, sem mover um músculo se quer, disse: Idiota! Verme! Gusano do lodo da terra. Que pergunta imbecil! Saia, agora! O espadachim se enfureceu, ficou vermelho e confuso. Sacou a espada e a levantou contra o velho sábio. O ancião, passivo, ergueu a mão direita e disse: Pare! Isso é o inferno! O viajante aquietou-se e serenou. Devolveu a espada à bainha e lentamente, de forma humilde e afetada, ajoelhou-se para implorar o perdão do mestre. O velho recolheu a mão para dentro do quimono e disse, em sublime cordialidade: isso é o céu!”
Caros, saibam, a vida não cabe na autoajuda.