Todo carnaval eu me lasco

Todo carnaval eu me lasco

Estou promovendo a minha autobiografia não autorizada. Espero que vocês aprovem, já que eu não. Prova disso é que a hipérbole se constitui uma figura de linguagem inerente aos apaixonados. Boas doses de exagero e de melodrama não farão mal algum. Todo carnaval eu me lasco. Desde criancinha que eu me lasco. Dentro da barriga da minha mãe, eu já me lascava com aquele tremendo pressentimento de que nasceria num período bombástico da história, em pleno regime militar, ao som do Hino da Bandeira ou de alguma marchinha carnavalesca misógina. Nunca eu queria ter vindo ao mundo na pele de uma mulher.

Aliás, quando eu nasci, um anjo torto sussurrou no meu ouvido que havia o diabo do Castelo Branco comandando a tirania dos milicos no país e que, apesar de estarmos em setembro de 1965, jamais fui capaz de esquecer a enfermeira de sala batucando numa bandeja cirúrgica, a cantar “Eu te amo, meu Brasil, eu te amo. Meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil. Eu te amo, meu Brasil, eu te amo. Ninguém segura a juventude do Brasil…”. Queria segurar no pescoço daquela jovem e esganá-la, mas, eu tinha apenas três minutos de vida. Enquanto isso, o calvo obstetra rebolava no banquinho o seu traseiro fofo, patriótico, ao mesmo tempo em costurava com tripas de gato o rasgo que eu fizera nas partes da minha genitora, ao mergulhar sobre as suas trêmulas mãos de alcoólatra.

Dei sorte por não ter nascido preto num país de racistas. Sobrevivi aos tabefes do doutor tremeliques e aos agudos terríveis do corpo de enfermagem. Daquele dia em diante, fui criado sem muita pompa, porém, com conforto, no seio de uma família padrão classe média. Politicamente, os meus pais eram tão neutros quanto detergente para lavar louças, de tal forma que passamos incólumes pelos bicudos anos de ferro da ditadura, sem enferrujar os corações, sem nos ferrarmos com os militares a ponto de sermos presos sem motivo, de sofrermos a tortura oficial do Estado ou de desaparecermos do mapa como flatos subversivos.

Confesso que nunca gostei de carnaval. Lembro-me das modorrentas matinês de no clube dos bancários, onde eu e meus irmãos éramos levados pelos nossos pais para brincar a festa de Momo com as outras crianças. Eu sempre arrumava um jeito de escapulir da folia para bater bola com demais desertores no campinho de areia salpicado de bosta de gato. Não me dou com felinos. Prefiro tamborins.

Quando meus velhos perceberam que a gente não se amarrava em confetes e serpentinas, levaram a prole para passar os feriadões carnavalescos na roça, embalados pelo som dos grilos e dos passarinhos. Passaram-se os anos e as gônadas finalmente despertaram no vão das minhas coxas. Tufos de cabelos crespos tinham crescido nos sovacos, no púbis e eu já não sentia mais vontade de passar o carnaval na companhia dos meus pais. Veio o inferno da adolescência e, com ela, a arrogância, a chatice, a rebeldia e o furor dos hormônios tocando o terror. Era chegada a hora de beijar as mocinhas na boca e, quiçá, com alguma sorte, apalpar os murunduns.

Em matéria de conquista, sempre fui um fracasso reconhecido. A timidez era paralisante. Passaram-se primaveras, carnavais, e não conseguia me dar bem com as garotas. Certa feita, embarquei num carro com três amigos e fomos parar numa remota cidadezinha do interior. Rezava a lenda que rapazes da capital eram tratados como reis pelas nativas das plagas interioranas. Não sei quem inventou tal fake news, já naquela época. Foi o mais deprimente carnaval da minha adolescência. Talvez, o povo soubesse que estávamos prestes a chegar, então, evadiram do local. Fato é que a cidade ficou praticamente deserta e tinha um hippie grisalho tocando “Wish you were here” num violão surrado que faltava a sexta corda, no salão paroquial onde filhos-de-uma-égua nos garantiram que aconteceria o grito de carnaval. O único grito que aconteceu foi de raiva. Partimos na manhã do dia seguinte.

Os carnavais sucederam sem romances que valessem a pena ser contados com brilho nos olhos. Era um revés amoroso atrás do outro. Acho que a inhaca tinha colado em mim. Apostei as minhas fichas no carnaval da cidade das melancias. Todo mundo jurava que era um dos melhores destinos do país para se farrear. Como não tinha grana suficiente para ir para o Rio e Salvador, embarquei nessa esparrela e, claro, acabei me lascando pela enésima vez. Fui na companhia dos mesmos companheiros de fiascos, dentro de um Chevette marrom, movido a gás de cozinha, que faltava as maçanetas e só pegava no tranco. Um sujeito que vendia loterias numa praça explicou que realmente a cidade tinha um povo festeiro e ficava lotada durante a festa da melancia, no mês de outubro. Fora disso, nos demais feriados da folhinha, virava um verdadeiro marasmo.

Ouvir aquilo foi um baque, mas, segui com os companheiros de farra para a primeira noite de carnaval que acabou se tornando a última. Estávamos no salão social do Rotary. Toda biboca tinha um Rotary. Havia muito pouca gente por ali. Acendi o meu radar em busca de gatinhas disponíveis, mas, só captei um grupo de senhoras adentradas da menopausa que trocavam receitas de chá de amora. Resignado, decidi aproveitar a noite e me divertir ao som do DJ Jucinei, um rapazola magricela com óculos fundo-de-garrafa que tocava velhas marchinhas de carnaval só para matar a gente de desgosto.

À certa altura da noite, abarquei a cintura de uma matrona encorpada que estava dando sopa no perímetro. Rodopiamos pelo salão tantas vezes que sentimos vertigem. A cada volta que eu passava pelos companheiros sentados numa das mesas, era agraciado com um copo cheio de cerveja. Estranhei a gentileza dos camaradas, pois, em condições normais de temperatura e pressão, nunca eram gentis. No dia seguinte, durante a nossa fuga, contaram-me que recolhiam sobras de cerveja quente das outras mesas e punham no copo para eu beber. Como se vê, não se pode confiar nos amigos, são uns demônios.

A fuga se deu por uma causa justa: defender a própria vida. Era alta madrugada quando afunilei a resenha com a coroa no sentido de buscarmos um local mais reservado para… Bem, vocês sabem. Pedi o carro do meu amigo emprestado, coloquei a moça dentro, empurraram o possante e… voilá!! Mesmo sem habilitação, dirigi ladeira abaixo, enquanto os demais retornaram para a única pensão da cidade onde estávamos hospedados com percevejos.

Cerca de uma hora mais tarde, retornei ao reduto. A turma resistia acordada, tomando vodca com Mirinda. Só de pensar nisso me embrulha o estômago.  Curiosos com o desenlace do romance, perguntaram o que tinha rolado. Mostrei-lhes as mãos sujas de fuligem. O pneu tinha furado. Não havia um macaco no porta-malas. A doida alegou que podia pegar emprestado no carro do marido, que já estava dormindo. Assim como eu, o sujeito não gostava nem um pouco de carnaval.

A partir daquele fatídico dia, passei a frequentar festas juninas. Foi aí que a minha sorte mudou. Mas, isso é assunto para outro dia. Tenham todos um excelente feriado de carnaval. Se beberem, apenas se divirtam.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.