Começa assim: abrimos a porta de casa vagarosamente e avisamos que aqui dentro mora um coração que mais parece um cachorro ressabiado. Falamos das nossas vontades com todas as letras, explicamos o beabá do que queremos e do que não permitimos porta adentro, para que depois não haja mal entendido, para que na batalha do amor ninguém saia machucado. Mas não adianta. Todo confronto tem feridos, às vezes mortos. Pelo sim ou pelo não, se o amor não mata, de toda forma acabamos morrendo pela falta dele. Então é preciso arriscar, entrar em campo, e ver no que isso vai dar.
Muito bem. Ao invés de invadir o território alheio, convidamos o amor para entrar em nossa morada, depois de tanto falar sobre o coração arisco, que já não é mais moço nem destemido. Pedimos cautela. Estamos confiantes de que construiremos novos cômodos com porta-retratos sorrindo pelas prateleiras, estampando a construção de um sentimento que caminha sem pressa. Mas não. Ao contrário das nossas expectativas mansas e da clareza das recomendações para lidar com o bicho ressentido, apesar da gentileza com que foi pedido um dia após o outro sem promessas maiores, o amor entrou pela porta feito um rinoceronte, arrebentando paredes, jogando tudo ao chão, destruindo a casa e derrubando o cão cabreiro, sem pensar em nada além das próprias ânsias.
Mas por que isso acontece, se abrimos o mapa do nosso coração e mostramos o caminho a ser percorrido? Por que as pessoas não escutam os nossos receios, não respeitam as nossas margens? Por que elas se atropelam com passos maiores do que as pernas? Sim, permitimos a entrada delas em nossas vidas, mas não autorizamos que chutem os nossos limites e que pisem nas nossas vontades.
A questão é que não importa em que idioma você fala. De vez em quando somos mais incompreendidos que letra de médico e música do Caetano. A pessoa entende tudo ao contrário do que dissemos. Ou pior: ela acredita naquilo que lhe parece conveniente, distorcendo a nossa retórica, transformando o nosso não em sim, o talvez em sempre. Será que não somos suficientemente explícitos, que estamos plantando dúvidas, ou é o outro que adultera a realidade?
Tentando entender por que isso acontece, por que as pessoas acreditam no que querem e não no fato em si, eu li sobre um psicólogo, Aaron Beck, que disserta sobre as distorções cognitivas. Ele diz que os nossos pensamentos são influenciados pelas nossas emoções e vice-versa. Desse jeito, nós só compreendemos o que a emoção permite. Enxergamos somente o que queremos ver. Distorcemos mesmo. Porque o sentimento confunde a percepção. Por isso que as pessoas que estão de fora enxergam com tanta clareza, enquanto nós, imersos, não encontramos a saída.
Mas, veja bem. Quantas vezes nós também entendemos tudo errado, só porque estávamos apaixonados? Quantas vezes acreditamos que ele estava a fim, quando na verdade estava sendo apenas gentil? Quantas vezes esperamos um pedido de namoro depois de uma noite tórrida, e esse compromisso nunca aconteceu?
Então, não adianta o quanto somos sinceros, porque a nossa verdade será paralela à verdade do outro. Até que as duas verdades e as duas vontades se cruzem numa só, é preciso percorrer muitos caminhos ou ser provido de muita sorte. Vai saber.
De nada importa os sinais que vêm do outro lado. Nós só acreditamos em nós mesmos e no que murmura o nosso coração irracional. É que ainda somos bicho por dentro. Enquanto estivermos tomados de um sentimento, seremos guiados por ele, ignorando a realidade.
Para uma pessoa apaixonada, qualquer sorriso é prova de amor. Se é verdade ou não, aí são outros quinhentos.