As já célebres oficinas de escrita criativa da União Brasileira de Escritores Seção Goiás, que contou com a participação de alguns dos maiores autores brasileiros, gerou um grupo de WhatsApp que se transformou em um verdadeiro fórum de debate cultural, onde há irrestrita liberdade de expressão. Há participantes de todo o Brasil e do mundo: Argentina, Arábia Saudita, Portugal, Canadá e outros. Já houve de tudo neste grupo: polêmicas, brigas, surras intelectuais homéricas, reconhecimento de derrotas, críticas sinceras e até amizades que se formaram. A Revista Bula, percebendo o nível dos debates travados no grupo tem desafiado seus participantes na difícil arte de produzir microcontos. Desta vez com o tema Carnaval. Como diria o carnavalesco Joãozinho 30, “missão dada é missão cumprida”. Segue o resultado. Lembrando que os microcontos estão apresentados em ordem aleatória, sem comissão de frente, bateria ou mestre sala e porta bandeira.
O espadachim
Era invisível. Então sambou a noite inteira na rua, nu, fantasiado de Adão. Ao raiar o dia, olhou ao redor desamparado. Na cidade fantasma, nem a música era real.
Solemar Oliveira
No pulo!
— Não irei a Iporá, mô! Maldita Covid! —. Leo entendeu. Ligou a TV. Vinhetas carnavalescas. Ideias alegóricas. — Hum! folia de coxas dançantes. Dias fogosos… Lá vou eu! —. E foi. — Oba! a banda de Ipanema. Tô dentro. — Jesus, me alcovite! Danou-se! — Você?! E esse aí, a Covid!
Lêda Selma
O bloco do pobre-diabo
Ele tinha dois sonhos: ir a um baile de Carnaval e ser alguém na vida. O baile seria no clube do bairro — comprou chifres e um rabo de plástico. No bom do alalaô, ele nem viu que suas patas, agora de bode, pisoteavam os foliões. E que um forte cheiro de enxofre esvaziava o salão.
Cintia Moscovich
O folião e a tatuagem
Congresso em Salvador, casa dos pais, antes do Carnaval. Justificou à esposa sobre a mãe internada. Passaria o feriadão a lhe dar cuidados. Comprou abadá, peruca, balaclava e baby look. Três dias de folias. Mas se esqueceu de que só ele portava cupido tatuado sobre o plexo solar.
Edival Lourenço
Oi zumzumzum, tá chegando um
Aquela moradora de rua vivia bêbada. O companheiro, idem. Parecia uma relação sem saída. Ontem ela reapareceu, depois de algumas semanas, cara limpa. Um bloco de foliões passava pela avenida, enquanto a moradora de rua acariciava a barriga de dois meses. E o carnaval seguia seu caminho.
Sergio Fonta
Saudosismo
As cores dançavam o samba na avenida, enquanto máscaras caiam do cenário destruído pela correnteza. O povo, ainda pasmo, buscava no leito do rio os antigos carnavais em movimentos. De repente, um arco íris coloriu o ar do espaço/tempo de sonho e realidade.
Maria de Fátima Gonçalves Lima
Atrás do trio
Alguém gritou: “simbora!”. Eu fui. Só não vai quem já morreu. Nesta hora, basta o corpo.
Marcelo Frazão
Falolíngua
No carnaval passado, namorei uma fonoaudióloga que me ensinou os melhores exercícios de língua.
Hélverton Baiano
Momo-contínuo
dobrei a dose, dancei sangrando. era carnaval. e porque era, quis emendar o porre e arremeter à festa. não vi se segunda ou terça. não vi se bêbados já bebiam cinzas em penitência. se de farristas nasciam farricocos. não vi quarta ou sexta, abril ou maio. natal, ano novo. era carnaval. dobrei a dose, dancei sangrando. era carnaval de novo.
José M. Umbelino Filho
Ninguém escapa
Foi muito rápido. Bastou um dedo apontado, uma frase, uma suspeita. “Olha a cabeleireira dele!”. E Zezé viu-se perseguindo, acuado. “Será que ele é?”, perguntavam. “É sim, esse Maomé bossa nova transviado”, respondiam. “Pega! Pega! Corta o cabelo dele”. Zezé também não escapou.
Luiz Fafau
Mas que folia é essa?
Desde menina, na roça, Dália ouvia os mais antigos reprimirem as crianças: “Não quero saber de folia aqui”, “essa casa está uma folia”, “vão apanhar para deixar de folia”. Depois de alguns anos, já na cidade, a menina tornou-se mulher e no Carnaval descobriu a folia.
Rodriana Costa
Cinzas
E aí, pierro? Cinzas pelas calçadas e bitucas de solidão espalhadas na avenida. Doe, né?
Sônia Elizabeth
Carnaval no interior
Sussu naquele carnaval de 85 foi homenageada com o enredo “pinto mole não fura couro” num bloco de sua cidade, essa ficou para a história. Na choupana as marchinhas animam a mocidade que iam escondidos de seus pais, só que em novembro nascia muitas crianças frutos de amores carnavalescos.
Matheus Nunes
Memento
Bebeu cachaça o carnaval inteiro. Entornou o caneco à brasileira. O caneco, o copo, a garrafa e quejandos. Fantasiou-se, pitorescamente, saiu nos blocos, dançou nonsense, riu como quem ama, beijou, transou e até se esqueceu do chefe. Dois anos sem, deu-se o direito, numa autoconcessão catártica. Meteu o louco, como se não houvesse amanhã. Mas amanhã virou hoje: era quarta-feira — e o definia bem: — de cinzas.
Rafael Fleury
Carna’vrau
Sem música, já era tarde. Largadas, num canto qualquer, duas fantasias. É fato. Vai nascer sob o signo de escorpião.
Eliézer Bilemjian
Escola da vida
Viveu em harmonia consigo, com os outros e com a batucada, elegendo a lua como tema de seu samba-enredo raiz. Com humildade até no fim, transformou São Jorge em gari, sua lança em vassoura. E sambando gloriosamente, encerrou seu desfile.
Émerson Falkenberg
Trava língua de carnaval
Salvador. Sal e suor, arde. Saudade.
Beatriz França
Cupido
Sopro as velas do meu bolo de cerveja. Meu bloco de carnaval! Aproveito a festa solteira, olhando em volta atrás da próxima paquera. E o vejo. O cupido se aproxima de mim, me rouba um beijo e leva meu coração junto. E some. E me deixa sem meu coração em pleno carnaval.
Nunca mais consegui o recuperar.
Marina Bello
Surpresa
Programou as férias para viajar no carnaval. A virose prendeu-a em casa. Ao assistir, pela tv, a uma matéria sobre as farras do entrudo, viu sua fantasia exclusiva bailando.
Gisela Maria Bester
O mascarado
Enfim chegou o Carnaval. De tanto ocultar a máscara da face não conseguiu mais tirar a fantasia.
C.J. Oliveira
Chicleteira ela
Rodopia pra se punir com mais uma onda de náuseas. Arranca a tiara de lantejoulas e esfrega o que restou do gloss-glitter. Rodopia. Quem sabe o tilintar agradável das pedras do abadá dilua o espanto. Rodopia como se mantra corporal expurgasse amor clandestino.
Isadora Vilela
Encontro
A máscara salpicada de lantejoulas. A voz rouca que insistia: — Carnaval. Boate Sótão. Galeria Alaska. Lembra, meu cara. Lembrei uma oração até ele virar uma sombra anã e desaparecer pela fresta do túmulo onde se apoiava trêmulo. Olhei o céu.
Ernane Catroli
Uma alma boêmia
Nasceu em meados de fevereiro. Era carnaval. Pela folia se apaixonou. Não a largava de jeito algum. Em seu calendário, riscava todas as quartas-feiras, de cinza.
Rodrigo Celestino Rocha
Carnaval carioca
Rio, favela, a francesa buscou a fantasia, custou três salários-mínimos. Pagou em um dia o trabalho de três meses, para uma noite de história, de glória, o trabalho de toda uma comunidade. Eles não vão pra Paris, mas são o centro das atenções do mundo em uma hora de desfile.
Linea Sousa Silva
Glitter
Há quantos anos não pulava Carnaval? Este ano, que resolvi pular, o confete virou pó.
Danilo Baldacini
Máscaras
Em dias de Carnaval encontrei muitas expressões. Cada rosto um enigma em meio a bandeirolas e luzes de cores diferentes. Desinibidos, procurando cada um a satisfação dos seus desejos. Eu estava em um baile de máscaras e, aos poucos, cedia as sensações.
Eduardo Lima
Folia
Após ataques imbroxáveis, gases de efeito preconceituoso, uma salvação criminosa e o salário sendo mínimo, enfim o Carnaval! Esse ano eu pulo!
Jazz Oliveira
Inversão de papéis
Despidos de máscaras, foi amor à primeira fantasia.
Marielle Sant’Ana
Diário de bordo #2
Uma expedição enviada ao planeta denominado Terra, antigos povos, hoje quase extintos, encontraram um artefato tecnológico inusitado: o objeto se chamava pen drive e servia como uma mala para guardar arquivos digitais. Seja lá o que isso pudesse significar. Após muitos esforços os descendentes, daquele povo primitivo, encontraram vestígios da cultura de seus antepassados. Uma orgia carnavalesca datada, do ano terráqueo, de 2023. Pouco tempo depois boa parte de sua população seria exterminada por uma guerra nuclear. Isso foi tudo o que restou daquilo que chamam de humanidade.
Léo Prudêncio
Carnaval sob o mote do “Anticristo”, de Lars von Trier; ao menos estamos na água, mamãe
Antes da carne ser algo mortal, ela foi. Desviamos dos bloquinhos e mais cedo no motel, evitamos a fila. Repetimos na banheira, uma boa erva, dizem que ajuda o orgasmo e é verdade. O telefone, a gente ignora. O motel pegava fogo, literalmente. Morremos como na Boate Kiss.
Marcelo Brice
De outros carnavais
As marchinhas carnavalescas ecoavam pelo clube social da cidade. Dos olhos dos Pierrôs, Arlequins e Colombinas as lágrimas eram verdadeiras atrás das máscaras que usavam para disfarçar suas dores. Olhares furtivos pelo salão. Era uma controversa ciranda do amor.
Jane Costa
Escorpiano
Não fosse o carnaval, ele não teria nascido.
Cristiano Siqueira
Jóquei clube
Inventou de passar o Carnaval no Jóquei Clube sozinho. Queria encontrar com a Carmem, mas caiu com o lenço ainda pressionado ao rosto. Augustina foi para o hospital segurando a mão da sogra.
Pablo Mathias
Amaro bagaço
Amaro acordou frevando. “É carnaval, mô!” Emendou Galo com Olinda, amanheceu no Marco Zero. Trôpego, mal acertou o ônibus. “Isso é hora, cabra safado? Toma esse café.” “Quero não, mô. Quero é mais!” Melou a cara, se vestiu de mulher, saiu. “Esse Amaro…”, comentava-se pela rua.
Malthus de Queiroz
Naquele carnaval
Respeitável. Velho. Macho? O que teria te acontecido se eu tivesse me assumido
Ínes Habara
Cinzas
Deslizo em corpos suados. Brilham dourados, fúcsias, violetas. Explodo em confetes, me desenrolo em serpentinas. No dia seguinte, somente cinzas.
Vera Lúcia Parenza
Dê baixa
Tudo preparado para o Feriado de Carnaval. Eu só pensava na rede, no riacho e no vinho que ganhei no Natal. O chefe me chama. O colega que trabalharia no feriado se acidentou. “Queimadura de terceiro grau”, disse. Mas trabalhei por 45 dias sem folga. “Dê baixa, então”, respondi.
Bruna Santos
Ponto facultativo
Em êxtase, João carnavalizou na avenida dos lampejos, quando uma súbita inversão atravessou-lhe os sentidos. Anteviu a dor dos sátiros. Um sopro ao contrário e as cinzas da quarta-feira abateram-lhe a face.
Gabriela Lima
Fantasias!
As belas cores que enfeitam as ruas, onde se pula e brinca, a alegria sai a para brincar não tem mais tristeza, agora e só alegria, e essa é a melhor fantasia, todos são o que querem ser, não importa se são e nem para aonde vão.
Wanice Garcia Barbosa
Alienígenas
Dois alienígenas vêm para o Brasil, pois ouviram falar que havia um feriado famoso por aqui.Duas semanas depois, eles voltam para seu planeta. Um não sabia por que tinha tantos números anotados. Outro caiu bêbado no espaço-porto.
Felipe Araújo
No carnaval também matam-se pessoas
Matou o eletricista e fugiu num trio elétrico
Veronika Topic Eleuterio
Rainha de bateria
Passe-me o sonho pelos olhos da sua avenida, Flora, passiflora em profusão. Não há evolução e harmonia, enredo de mar matreiro, que passe fora, Flora, da bateria do seu coração. No batuque de rimas e chamego, soletro uma flor verde e rosa, na ginga da minha cueca samba-canção.
Carlos Edu Bernardes
Me guardando
Estava me guardando para quando o carnaval chegasse. O carnaval chegou. Eu não cheguei para o carnaval.
Ademir Luiz
Como Paulo em Damasco
Folião convicto, pra ele não havia cons no carnaval. Os pros alardeava com orgulho: “sexo com estranhos, rua o dia inteiro, pirar como se não houvesse amanhã”. Um dia, subitamente, os pros pareceram todos cons. Desde então passa o feriado com a tia Sônia em Presidente Prudente.
Kamilly Barros