Tem uma obra de construção civil ao lado do prédio em que trabalho. Estão levantando um novo empreendimento. “Aproveitem. Restam poucas unidades” é o que dizem, em letras garrafais, a fim de melhorar as vendas que não estão lá essas coisas. Há uma grave crise econômica aporrinhando o país. Eu gosto de dar um tempo, de tomar cafezinho pela manhã, de ligar o cérebro aos poucos que nem televisão-de-tubo antiga, de espiar pela janela o movimento dos operários que zanzam lá embaixo. Faço uma reclamação com Méuri, a copeira, por causa do açúcar colocado de novo na fervura do café. Enquanto faz caber as quilométricas tranças rastafári dentro do gorro, ela sorri com dentes mais brancos do que o repulsivo açúcar cristal, mas, continua a coar o café ao gosto dela, como se o meu pedido fosse um risco n’água.
É formidável o trabalho dos homens lá embaixo. Cá em cima, Méuri até que trabalha direitinho, apesar da teimosia. Já se vão cinco meses desde que começaram os serviços de fundação do prédio. Então, eles conferem as medidas, cavoucam a terra, entortam os vergalhões, despejam o concreto, drenam a água do lençol freático, tapam e destapam, tapa e destapam, tapa e destapam buracos. O entra-e-sai de caminhões basculantes é frenético. Há duas máquinas pesadas, formidáveis, operando no canteiro de obras. Uma delas, que se parece com o cotovelo de um ser humano, cava o lote como se fosse a mão em concha, faz uma curva aguda no ar e despeja a terra dentro das caçambas dos caminhões. A outra engenhoca, que lembra um saca-rolhas gigante, fura o piso tão profundamente que, chego a imaginar, vai cutucar o traseiro de alguém do outro lado do planeta.
As duas únicas mulheres que identifico a saracotear pela obra são discretas, vestem uniforme, calças jean, botas de couro e capacete. Presumo que são as engenheiras responsáveis, pois, vistoriam cada detalhe dos trabalhos, conferem, corrigem e orientam a peonada com diligência. Homem nenhum ousa bulir com elas. Os xavecos ficarão para um futuro breve, quando serventes de pedreiro vão gesticular e assoviar para as transeuntes desconhecidas, supostamente, para se declarar apaixonados por elas. “Vai ser linda assim lá em casa”, é o máximo de elegância que um homem nessas circunstâncias consegue externar. Um dia, atendi uma senhorinha simpática, verborreica, cuja queixa, dentre tantas, dizia respeito ao fato de que os homens já não mexiam mais com ela, por onde quer que passasse. Nos seus dizeres, sentia-se humilhada, deprimida e nada atraente. Sem saber ao certo o que dizer naquela situação, afirmei o óbvio: todos estamos envelhecendo, Dona Antonieta; eu, a senhora e os serventes de pedreiro.
De maneira geral, gosto mais de observar do que falar. Acompanho o vai-e-vem da turma e procuro compreender a dinâmica operacional. Do alto, à distância, ainda mais para um sujeito leigo no assunto, tudo parece repetitivo e sem grandes avanços. No entanto, a despeito da minha óbvia ignorância, faça sol ou faça chuva, os homens continuam a revirar a terra como tatus a drenar água, a torcer ferrolhos, a despejar argamassa, a preencher caminhões que saem bufando e soprando fumaça preta na atmosfera urbana já pouco respirável.
A cafeína começa a produzir efeito e já me sinto melhor, mais vívido do que minutos antes. Reflito sobre os paradoxos da natureza humana, o que acaba sugando um bocado de energia vital remanescente. A ciência é movida pela inteligência e pela curiosidade, prestando memorável serviço ao mundo por meio da evolução tecnológica. Às vezes, por causa do eficiente compartilhamento de desgraças e de más notícias, pode parecer que estamos retrocedendo em humanismo, mas, seja qual for a área do conhecimento, o aperfeiçoamento contínuo é inconteste. Carros elétricos operam sem motoristas. Vacinas são desenvolvidas de última hora, no afogadilho, de acordo com as necessidades prementes para conter pandemias e salvar pessoas. Foguetes são produzidos e programados para orbitar outros planetas. Smartphones conectam pessoas, simultaneamente, dos mais variados continentes do globo.
Em contraponto, recordo-me das recentes notícias sobre os ataques massivos da Rússia contra alvos civis na Ucrânia, destruindo casas, prédios, pontes, escolas, hospitais e monumentos, além do óbvio massacre de civis, dentre eles, velhos, grávidas e crianças. Fui informado também do catastrófico terremoto que destruiu bairros inteiros na Turquia e na Síria. Não tive saúde mental suficiente para assistir pela TV às angustiantes cenas de resgate dos mortos e dos sobreviventes sob as montanhas de escombros, claramente, flagrantes de desmesurado suplício. Estima-se que, ao findar a contabilização dos corpos, chegar-se-á à impressionante soma de uma cidade inteira, de médio porte, dizimada pelos tremores sísmicos.
Sinto tremuras interiores. Devo estar passando pela abominável fase da vida quando se tampa o sol com a peneira para fugir da realidade, a qual fomenta mais amargura e mais desencanto. Ouço o canto desafinado da Méuri, enquanto enxágua os utensílios. Parece alegre e animada, apesar dos paradoxos que hora me afligem. Evito, por causa disso, acompanhar os noticiários e, até mesmo, conversar sobre assuntos escabrosos com as outras pessoas. Às vezes, falo sozinho. Na maioria das vezes, falo sozinho. Tenho consciência de que sou um péssimo ouvinte e que posso estar pirando. Mas, isso já é problema meu.
Penso no esforço redobrado de arquitetos e de engenheiros nos países corriqueiramente acometidos pelos terremotos, profissionais que se prestam ao desenvolvimento de produtos ou de tecnologias mais resistente para a edificação de obras prediais. Da mesma forma, me surpreendo, negativamente, ao lembrar da dedicação de outros tantos cientistas para a fabricação de armas e de munições cada vez mais eficientes para matar o inimigo que, outra pessoa não é, senão um coirmão que fala uma língua diferente.
“Se o senhor ficar pensando demais, acaba enlouquecendo. Bora atender a mulherada, que a sala de espera tá lotada de gente”, comenta a Méuri, com indisfarçável atrevimento. Seu jeito trigueiro, engraçado, faz-me gargalhar. Interrompo a reflexão. Devolvo a xícara na copa. Reclamo outra vez do café melado, que é para não perder a viagem. “De amarga, já basta a vida, doutor”, ela replica. Comento que as suas longas tranças rastafári mais parecem uma cobra enrodilhada sobre sua cabeça, prestes a me dar um bote. “Suma já daqui, seu careca”, ela ordena, ao passo em que sorri com dentes africanos mais brancos do que as faíscas de um míssil em Kiev. Curado de vida, visto o jaleco, confiro a franja que não possuo e mando entrar a primeira paciente do dia.