Em 1960, surgiu uma escritora inesperada na literatura brasileira, por conta de sua origem social. Ninguém imaginava a existência de uma autora moradora da favela do Canindé, na cidade de São Paulo. Do meio do nada, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) entrou para o meio literário e trouxe um olhar inédito sobre as coisas do país que, na época, vivia os anos dourados da bossa nova, da inauguração de Brasília e do slogan dos cinquenta anos em cinco de Juscelino Kubitschek.
O livro “Quatro de Despejo — Diário de uma Favelada” revelou o lado B de um progresso econômico, a era de ouro do desenvolvimentismo. Mais impressionante era a capacidade poética de Carolina Maria de criar sínteses por meio de imagens, a começar pelo título da obra. Ela definia, de forma aguda, a grande metrópole dividida entre “sala de visita” e “quarto de despejo”. Uma parte organizada segundo os traços de civilização, a outra como um depósito de restos da sociedade.
“Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos”, escreveu em seus diários. As palavras de Carolina contrastam o espaço urbano mais amplo ao universo doméstico de uma casa comum brasileira — algo tão usado pelos cientistas sociais. É uma escrita (ou poética) simples, direta e na qual se podem escutar os sotaques regionais de uma pessoa que migrou do interior para a cidade grande.
“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”, diz a autora, acrescentando: “As vezes mudam algumas familias para a favela, com crianças. No inicio são iducadas, amaveis. Dias depois usam o calão, são soezes e repugnantes. São diamantes que transformam em chumbo. Transformam-se em objetos que estavam na sala de visita e foram para o quarto de despejo”.
Contrastes e antagonismos
A imagem do espaço é um clássico do pensamento social no Brasil, mais especificamente no que se convencionou chamar de grandes intérpretes do país. Gilberto Freyre usou as dicotomias de casa grande/senzala, sobrados/mocambos, e deixou incompleto um estudo de jazigos e covas rasas. São polaridades que ajudariam a decifrar o “claro enigma” da sociedade brasileira. Um desdobramento do pensamento freyreano foi feito com Roberto da Matta, com a divisão entre os mundos da “casa” e da “rua”.
Uma conclusão que se pode tirar é que, com sua “sala de visita” e seu “quarto de despejo”, Carolina Maria de Jesus se colocou na galeria dos intérpretes do Brasil. A novidade é o fato de ela trazer a visão a partir do olhar dos pobres ou, para usar um termo do momento, da voz dos subalternos. O autor subalterno está em geral impedido de falar, mas o acaso possibilitou a escrita daquela favelada — assim como hoje ouvimos as vozes de rappers como Mano Brown, dos Racionais, e de Ferrez.
Também pode-se afirmar que Carolina Maria de Jesus é a mãe ou avó de uma geração de escritores que estão mudando a cara da literatura brasileira nas últimas décadas. Paulo Lins, Ricardo Aleixo, Geovani Martins, Grace Passô, Conceição Evaristo, todos eles e todas elas trazem um ar renovado e fecundo para a produção literária. Expande-se o chamado “cânone” que é um termo central da guerra cultural sem trégua travada pelos conservadores contra os “identitários”.
Muitas vezes reacionário, o pensamento conservador no Brasil atual se aferra às ideias de Gilberto Freyre para combater os identitários. Trata-se da visão nostálgica de um país miscigenado, sem conflitos raciais como aqueles dos Estados Unidos e que encontrou a fórmula mágica da paz num “equilíbrio de antagonismos” (questão central do livro “Casa Grande & Senzala”). Dessa forma, a obra freyreana apareceu como o grande achado e o limite para o pensamento social brasileiro.
Uma hipótese plausível é que, após a queda do Muro de Berlim, virou de bom tom a valorização da obra de Freyre e o apagamento, por exemplo, de um Florestan Fernandes. Com o marxismo em desgraça, os livros freyreanos tornaram-se a chave explicativa da sociedade, com a atrativo adicional de sugerir a maleabilidade dos brasileiros. Um elogio para a suposta capacidade de se moldar ou se ajustar às exigências da globalização econômica a partir dos anos 1990.
Hoje, com o país colapsado por todos os lados, é justo notar que o Brasil virou um “quarto de despejo” — que o digam os yanomamis neste começo de 2023. Também poderíamos acrescentar a expressão “imundice de contrastes” de Mário de Andrade, que sempre se colocou distante da nostalgia de Freyre. Por mais ojeriza que causem ou birra que se tenha por eles, chegou o momento de ler o que os “identitários” têm a dizer sobre o Brasil. É hora de enfrentar a imundice dos antagonismos.
Após anos no relento, a obra de Carolina Maria de Jesus começou a ser reeditada pelas grandes editoras. Já exposições e trabalhos acadêmicos a colocaram no centro dos debates contemporâneos, em torno das vozes subalternas. Ao mesmo tempo, aparecem análises que desfazem o oba-oba em torno de Gilberto Freyre. Estamos falando dos livros de Ricardo Benzaquen de Araújo (“Guerra e Paz”) e de Maria Lucia Pallares-Burke (que mostra as influências do pensamento racista do sul dos EUA em Freyre).