Ao ler o artigo sobre os doze maiores letristas “vivos” do cancioneiro popular pátrio publicado na revista Bula, em desafio o meu parceiro musical Francis Hime cobrou-me se eu não seria capaz de escrever sobre as principais compositoras nacionais, que assinaram algumas das mais refinadas pérolas da MPB. Quanto à convocação do excrete feminino, maestro, ei-la:
1 — Chiquinha Gonzaga
2 — Dolores Duran
3 — Maysa
4 — Joyce moreno
5 — Rita Lee
6 — Kátia de França
7 — Anastácia
8 — Ana Terra
9 — Cristina Saraiva
10 — Adriana Calcanhoto
Neste selecionado de letristas made in Brazil, principio-me com a capitã da equipe, a insuperável Francisca Edwiges Neves Gonzaga, a Chiquinha Gonzaga, que, literalmente, há de pedir passagem para resgatar a mulher da condição de mera musa inspiradora, para que assuma o protagonismo do lugar de fala, política e libertária, em pleno século 19, quando a maior parcela da população feminina brasileira era submissa e iletrada: “Ô abre alas que eu quero passar / Peço licença pra poder desabafar / A jardineira abandonou o meu jardim / Só porque a rosa resolveu gostar de mim”.
Em seu desabafo lírico, nota-se que a maestrina (e chorona) Chiquinha Gonzaga propõe a inversão das cantigas de amigo, que eram escritas por trovadores que se apropriavam do eu-lírico feminino, a fim de que entoassem a saudade pela partida do bem-querer. Ao subverter a ordem de gênero, o eu-lírico masculino da compositora transfere a ótica do abandono feminino, visto que a “amiga” irá embora por ciúme da rosa do jardim. Não obstante, a mais bela letra composta por Gonzaga fora “Lua branca”, cuja poesia infinda até hoje inspira a canção de gesta seresteira, às margens das janelas e fogueiras entorpecidas pelo dedilhar do pinho enamorado:
Ó, lua branca
De fulgores e de encanto
Se é verdade que ao amor tu dás abrigo
Vem tirar dos olhos meus, o pranto
Ai, vem matar
Essa paixão que anda comigo
Ai, por quem és desce do céu, ó, lua branca
Essa amargura do meu peito, ó, vem, arranca
Decerto, a precursora Chiquinha Gonzaga abrirá alas para o surgimento da pré-bossanovista Dolores Duran, que será uma espécie de Noel Rosa de saias, por sua precocidade; e, sobretudo, por sua produção musical. É importante compositora do período em que Vinicius de Moraes era quem cortava o baralho do carteado, para que os rivais Antônio Maria e Ronaldo Bôscoli se engolfassem em duelo público em defesa do Samba-canção X Bossa Nova, no coração da boêmia Copacabana.
Hoje eu quero a rosa mais linda que houver
E a primeira estrela que vier
Ah! eu quero o amor, o amor mais profundo
Eu quero toda beleza do mundo
Quero a alegria de um barco voltando
Quero ternura de mãos se encontrando
Para enfeitar a noite do meu bem.
Apenas a esplêndida letra da canção “A noite do meu bem” já impulsionaria Dolores Duran ao patamar de poetisa da palavra cantada; entretanto, a compositora carioca do bairro da Saúde ainda nos brindará com “Por causa de você”, em parceria com Antônio Carlos Jobim: “Ah, você está vendo só / Do jeito que eu fiquei / E que tudo ficou / Uma tristeza tão grande / Nas coisas mais simples / Que você tocou”. Diz-se, inclusive, que a melodia desta obra-prima fora roubada de Vinicius de Moraes das mãos de Tom Jobim, o que quiçá a obrigara à escritura de tais versos antológicos.
Contemporânea de Dolores Duran, a introspectiva Maysa, que teve a sua biografia abreviada em trágico acidente automobilístico na Ponte Rio-Niterói, fora importante intérprete e letrista da chamada música de dor de cotovelo ou fossa, que faz o público ouvinte cortar os pulsos, em razão do sofrimento amoroso: “Meu mundo caiu / E me fez ficar assim / Você conseguiu / E agora diz que tem pena de mim”. Neste tom melancólico, a dramática Maysa entoava os versos de “Alguém me disse”: “Alguém me disse que tu andas novamente / De novo amor, nova paixão, todo contente / Conheço bem tuas promessas / Outras ouvi iguais a essa / Esse teu jeito de enganar conheço bem”, a ponto de fazer páreo a “Ninguém me ama / Ninguém me quer / Ninguém me chama / De meu amor”, que ela esfregou na face de seu autor, Antônio Maria, como símbolo da melancolia humana.
Como a Bossa Nova não nos deu nenhuma letrista, surge-nos no bojo da MPB a moça talentosa dos olhos verdes à moda Chico Buarque, que contribui imensamente para o cenário de renovação, como força motriz da geração paz e amor: “Um coração / De mel de melão / De sim e de não / É feito um bichinho / No Sol de manhã / Novelo de lã / No ventre da mãe / Bate o coração / De Clara, Ana / E quem mais chegar”. Porém, a afinadíssima Joyce que se amorenou também se faz politizada, ao forjar em formão de feminismo a luta pela representatividade de gênero.
— Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina?
— Não é no cabelo, no dengo ou no olhar, é ser menina por todo lugar.
— Então me ilumina, me diz como é que termina?
— Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar.
Para fazer tabela com a garota Zona Sul, a Pauliceia Desvairada nos fabricou a espevitada e bela Rita Lee, fruto da contracultura norte-americana, que, qual Janis Joplin periférica, irá desafinar o coro dos contentes da burguesia, ao se rebelar contra os padrões sociais através de sua pegada rock and roll: “Levava uma vida sossegada / Gostava de sombra e água fresca / Meu Deus quanto tempo eu passei / Sem saber / Foi quando meu pai me disse filha / Você é a ovelha negra da família / Agora é hora de você assumir”.
Destarte, a eterna Mutante ainda nos presenteará com inúmeros hits, tais como “Lança perfume”, “Jardins da Babilônia”, “Desculpe o auê” etc., que cruzaram as décadas de 1980-90, entre os quais o hino aos direitos da mulher, intitulada “Cor de rosa choque”:
Sexo frágil
Não foge à luta
E nem só de cama
Vive a mulher
Por isso, não provoque
É cor de rosa choque.
Não provoque
É cor de rosa choque.
Do Nordeste, provêm estas duas compositoras magníficas e pouco divulgadas pela mídia musical: Cátia de França e Anastácia, sendo que a primeira vem a ser autora de obra poética originalíssima, acompanhada pelos timbres dos ritmos da Paraíba à Rolling Stones, a partir das vinte palavras ao redor do sol. Da geração de Fagner, Amelinha, Belchior, Ednardo, Zé e Elba Ramalho, a cantautora Cátia de França se celebriza pela firmeza de sua voz lírica grave e gutural, sendo detentora de obras-primas do porte de “Estilhaços”, esta em parceria com o poeta Flávio Nascimento; “Kukukaia”; gravada por Xangai; e o seu poema rosiano “Coito das araras”:
No Coito das Araras quem passa por lá não para
No Coito das Araras tudo está como sempre foi
O gado pasta no berra-boi
Tudo está como sempre foi
No Coito das Araras é o araçá das almas
O Zé que cantava é o sete-casacas
É a sombra do touro, e-ah, peroba-baiã, eh
É a sombra do touro, e-ah, tiborna-sertã.
Da sonoridade onomatopaica que resvala em “Conversa de bois”, do Sagarana de Guimarães Rosa, a letra-poesia se esvai por um certo surrealismo sertanejo, que irá desaguar em: “Ainda trago na boca, nos olhos / A visão da tua imagem / Despenteada, sorrindo / Correndo pela rodagem / Meia distância, meia légua, légua e meia”. Lindos versos trovadorescos que, com a sua roca do tempo, tece o vento, amolda o barro, forjica a lida e apura o cântico negro de Cátia de França.
A versátil pernambucana Anastácia, ocultada por detrás da sanfona mágica de Dominguinhos, vem a ser letrista de se tirar o chapéu de cangaceiro, por ser autora capaz de fazer a mais antirromântica das canções nacionais, que leva o singelo título de “Contrato de separação”: “Eu quis fazer com ela / Um contrato de separação / Negou-se então a aceitar / Sorrindo da minha ilusão”, ao mesmo tempo em que escreve a letra de “Eu só quero um xodó”:
Que falta eu sinto de um bem
Que falta me faz um xodó
Mas como eu não tenho ninguém
Eu levo a vida assim tão só
Eu só quero um amor
Que acabe o meu sofrer
Um xodó pra mim do meu jeito assim
Que alegre o meu viver.
Por ser a poetisa do forró pé de serra, a impetuosa Anastácia gravou o seu nome na História da MPB, da mesma maneira que a niteroiense Ana Terra, homônima da heroína de “O Tempo e o Vento”, de Erico Verissimo, que, como cartão de visitas, demonstrou o seu talento com “Amor, meu grande amor”, em parceria com Angela Ro Ro.
Amor, meu grande amor
Não chegue na hora marcada
Assim como as canções
Como as paixões e as palavras
Me veja nos seus olhos
Na minha cara lavada
Me venha sem saber
Se sou fogo ou se sou água
Amor, meu grande amor
Me chegue assim bem de repente
Sem nome ou sobrenome
Sem sentir o que não sente.
Primor de lapidação por (in)definição do sentimento, que irá dialogar por entrelinhas com “Terezinha”, de Chico Buarque. Neste interregno, a poesia de Ana Terra é fonte de água límpida irrepresável, que se traduz em sobrescritos fincados a sangue em pergaminho de pele de ovelha, a se transcrever por de reivindicação de liberdade feminina:
De manhã cedo essa senhora se conforma
Bota a mesa
Tira o pó
Lava a roupa, seca os olhos
Ah, como essa santa não se esquece
De pedir pelas mulheres
Pelos filhos, pelo pão
Depois sorri meio sem graça
E abraça aquele homem
Aquele mundo que a faz assim feliz.
A impressão que fica é que o recurso retórico utilizado pela letrista vem a ser o mesmo de Buarque de Hollanda em “Mulheres de Atenas”, que apregoa justamente o que se quer repudiar, feminística e libertariamente: “Se um dia você for embora / Não pense em mim / Que eu não te quero meu / Eu te quero seu”.
A carioca Cristina Saraiva é o mítico intocável por ser homiziado em estrofes talhadas pela sensibilidade à flor da pele, o que, quiçá, lhe inspira ao margear-se pelo intransitável do vocábulo ao relento: “Quem nasceu como eu / Com os pés no regato / E brotou flor do mato / Em beira de estrada / Olhando a passagem / De quem vai em viagem / Pra qualquer lugar”. Este início de canção só é comparável ao clássico “Serafim e seus filhos”, de Rui Mauriti: “São três machos e uma fêmea / Por sinal, Maria /
Que com todas se parecia”.
Neste diapasão, nota-se a presença de Adriana Calcanhoto, que adentra pelos labirintos do Verbo e de sua linguagem arqueológica, para nos saudar com a sua voz poética melodiosa e incisiva:
Livre do amor, enfim
Comigo só pra mim
Livre do ardor
Alforriada
Das canções melosas
Dona das minhas horas
Senhora dos travesseiros.
Símbolo dos pampas transviados, a camaleônica Adriana Calcanhoto desreverbera a mística condição da sacerdotisa dos elementos alquímicos, por ser responsável pela inversão da lógica milenar da transmutação do ouro em pedra bruta e filosofal. Inteligência que interpenetra o Cosmos, rabiscados nas palmas gauchescas de suas mãos quiromantes e céticas. Abismo humano a equilibrar-se sob o vulcão das ideias insólitas. Medéia e Sherazade de si mesma.