Por mais que queiramos acreditar que haja um propósito para estarmos no mundo, a vida se nos apresenta como um feixe de acontecimentos disparatados, ilógicos, capazes de a um só tempo afrontar a razão e os meandros menos iluminados do espírito do homem, que balança entre o desespero que o empurra para um pântano ainda mais fundo e a fé, que consegue sustentar nações inteiras sozinha. Lamentavelmente, quase nunca se pode vencer inimigos concretos apenas com a força do pensamento positivo, mas ainda assim não existe nada transformador que entender a vida como a porção de mistério a que cada um tem direito, e a partir desse conceito ir sabendo levar o outro bocado, o dos segredos que nunca se nos revelam. O ser humano fica espremido entre uma e outra realidades, ansiando por poder mostrar-se digno de ao menos merecer ter uma noção, básica que seja, do que está por vir em sua própria jornada. Essa aspiração, aparentemente tão simplória, orienta povos de ontem e de hoje, mirando o futuro, que não se sabe se há de chegar para todos.
Mirando um episódio fora do comum, sobre o qual se projeta uma lupa, “A Viatura” (2015) disseca segmentos ocultos da alma do homem — de um homem em especial. O filme de Jon Watts preza por esgotar todas as possibilidades de se conhecer o que fica por trás das aparências respeitáveis de tipos como este, um verdadeiro mestre na grande arte de iludir criaturas ingênuas, até que tropeça em sua própria autoconfiança. Lances do texto de Watts e Christopher Ford explicam bem os motivos que fazem desse sujeito um vilão, sem que, por paradoxal que possa soar, deixar nada explícito. As primeiras sequências são fundamentais quanto a se sentir a aura de ambivalência que o envolve e da qual decerto se nutre, até que tudo começa a vir abaixo. Watts e Ford se policiam para que nada seja exposto ou mesmo dito antes da hora, cuidado que se mantém ao longo de fluidos 87 minutos, o tempo preciso para que a história diga a que veio. Quando isso acontece, não se encontra nada além de um espetáculo de cenas de ação muito bem enquadradas, recurso técnico que complementa o que os olhos e os ouvidos do público registram.
“A Viatura” tem muito dos filmes de ação dos anos 1980, a começar pelo protagonista. O xerife Kretzer de Kevin Bacon é um pastiche divertido dos tipos encarnados por Rutger Hauer (1944-2019) e Charles Bronson (1921-2003), um tanto menos viril, que se diga. O cabelo acaju compondo com a calça marrom escuro faz pensar que Kretzer é o tiozão característico, pacato e meio deslocado num mundo que não para de girar, mesmo numa cidadezinha perdida nos rincões da América, impressão corroborada por uma das cenas de abertura. Um carro surge num terreno ermo, sem qualquer sinal de vivalma por perto. Aos poucos, como um fantasma rondando a própria sepultura, desponta o xerife, esbaforido numa camisa sem mangas, fisionomia entre colérica e satisfeita. O personagem de Bacon, visivelmente confortável no papel desse sujeito trevoso, vai ao porta-malas do carro, que a essa altura já se sabe se tratar da viatura de que fala o título, e tira de lá um corpo, sem muito cuidado. Desova o cadáver, volta uma segunda vez, e tem a surpresa que se presta a mote da trama.
Kretzer nem reage com o tom de destempero que se esperaria de alguém na sua situação, muito pelo contrário. Sua frieza causa espécie, mormente se comparada ao entusiasmo dos dois garotos que se tornam a grande ameaça de sua carreira — e de sua própria vida. James Freedson-Jackson e Hays Wellford encarnam a alegria inconsequente de crianças entediadas que descobrem o passatempo com que jamais poderiam ter sonhado, representando os desejos reprimidos de meninos do mundo todo. Quando são finalmente apanhados, Watts leva a narrativa a outro nível, o do suspense carregado dos jumpscares que lhe dão um jeito de terror. Os meninos, Travis e Harrison, mais o personagem de Shea Whigham, que desencadeia esse ato final, e a motorista xereta interpretada por Camryn Manheim, além, claro, do onipresente xerife encenam um verdadeiro pandemônio em que todos têm alguma culpa. E, em sendo assim, ninguém poderia escapar ileso.
Mesmo reciclando chavões já vistos com muito mais vigor em produções mais bem-cuidadas, como “Onde os Fracos Não Têm Vez” (2007), dirigida pelos irmãos Coen, “A Viatura” tem suas qualidades, sustentadas em grande medida pelo elenco afinado. A história, batida, agrada, claro, porém como mais do mesmo bem-feito num gênero já bastante saturado.
Filme: A Viatura
Direção: Jon Watts
Ano: 2015
Gênero: Thriller/Crime
Nota: 8/10