Ainda hão de se passar alguns anos até que histórias como a de Nora Monsecour deixem de provocar escândalo ou inspirar piedade e alcancem seu verdadeiro e justo fim: sensibilizar, conscientizar, despertar corações endurecidos e mentes congeladas para a evidência de que o mundo, o homem, a vida é a junção de realidades díspares entre si, mas que não têm de se chocar. Pelo contrário. “Girl”, o drama triste, quase trágico do belga Lukas Dhont, calam tão fundo em públicos de todas as orientações sexuais, ideologias, formações religiosas e preferências políticas devido a sua universalidade. A vida de Monsecour, hoje com 27 anos recém-completados, bailarina profissional desde os nove, sofre uma cisão quando a belga começava a descobrir-se e, como todo adolescente, necessitava apoio, cuidado, afeto e, não menos importante, instrução. Aos quinze anos, ainda anatomicamente um menino, ela começava a se destacar como uma das promessas da Royal Ballet School na Antuérpia, mas foi obrigada a abandonar a dança clássica e direcionar seu talento e suas frustrações para a modalidade contemporânea, precisamente devido às imposições artísticas — draconianas, reacionárias, obtusas, monolíticas, esquizofrênicas — de uma arte incapaz de enxergar-se a si mesma. E ainda que lhe parecesse um sacrifício austero demais, como foi, ela não fugiu à luta.
Com roteiro de Dhont e Angelo Tijssens, “Girl” se restringe ao período em que Nora, aqui chamada de Lara, já havia assumido a forma com que se identificava e passou a deparar-se, mais e mais assiduamente, com as questões muito próprias da situação em que se encontrava, uma espécie de dimensão paralela entre o que era e o que desejava vir a ser, o elo perdido que apartava o sonho da tortura. Fazendo uso da fotografia intimista de Frank van den Eeden, as primeiras cenas mostram o dia a dia de uma comum, talvez vítima da superproteção de Mathias, o pai vivido por Arieh Worthalter. O diretor dá indícios de que alguma coisa não vai tão bem com Lara em sequências como aquela em que garota fura as orelhas sozinha, ainda no primeiro ato, como se sugerisse um seu receio qualquer, da interação com os outros, de ser vistas, de ser confrontada com os próprios arbítrios. O medo é uma constante na vida de Lara; no entanto, obedecendo ao instinto de sobrevivência de que gente como ela tem de se socorrer, comparece as sessões com o psiquiatra atencioso e ignora constrangimentos infligidos por um professor meio sádico.
A escalação de Victor Polster para o papel principal, claro, foi alvo de polêmicas descabidas que logo restaram completamente eclipsadas graças ao profissionalismo e à comovente argúcia de que Polster se vale para não cair nas armadilhas que personagens como Lara escondem. Também bailarino, o protagonista destrincha cenas em que toda a inadequação de Lara vem à tona de um jeito incômodo, aflitivo, sem nunca fazer com que perca a cabeça, mas à flor da pele — a reunião na casa da amiga Anne, de Alexia Depicker, talvez seja o ponto alto dessa narrativa. Percebe-se a agonia de Lara pelas expressões tecnicamente calculadas do ator, que deixa para extravasar a tragédia que ronda a vida da moça nas passagens em que Dhont explora seus talentos na dança: é exatamente aí que Lara aparece como a mulher que tenta fazer sair de um espírito tomado de sombras, iluminando quem consegue desvendá-lo. O último trecho de “Girl” insinua um desfecho de infortúnio, mas Nora Monsecour pôde, enfim, submeter-se à cirurgia de redesignação sexual em 2014, aos dezoito anos. Victor Polster foi agraciado pela mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes com o prêmio de Melhor Ator.
Filme: Girl
Direção: Lukas Dhont
Ano: 2018
Gênero: Drama
Nota: 9/10