Filme sobre Shakespeare na Netflix é uma das mais belas leituras da vida do autor mais famoso de todos os tempos Robert Youngson / Sony Classics

Filme sobre Shakespeare na Netflix é uma das mais belas leituras da vida do autor mais famoso de todos os tempos

Kenneth Branagh é um apaixonado intérprete de William Shakespeare e já esteve envolvido em, pelo menos, seis projetos cinematográficos em torno do escritor. Em “A Pura Verdade”, ele tenta reconstruir ou imaginar períodos desconhecidos da vida do bardo, reabrindo segredos e traumas de sua família em três linhas temporais.

Mas o filme aborda mais intimamente sua relação com as filhas e a dor da perda do filho Hamnet, morto aos 11 anos, sob condições misteriosas. Aliás, o que não há de misterioso sobre Shakespeare? Embora seja o escritor mais famoso do mundo, sua vida é um completo enigma. Não há muitas certezas sobre nada, inclusive sobre a autoria de suas próprias histórias.

Dono de títulos brilhantes, como “Romeu e Julieta”, “Hamlet”, “Enrique VI”, Rei Lear” e “Otelo, o Mouro de Veneza”, ainda hoje há dúvidas se Shakespeare realmente foi a mente por trás das peças que foram eternizadas através da literatura. Embora existam algumas pessoas que dediquem suas vidas a estudá-lo, as várias contradições que o rodeiam tornam as verdades sobre ele nebulosas demais para serem desvendadas.

Sabe-se que seu pai foi um luveiro de sucesso, que pôde bancar durante boa parte de sua vida estudos para prepará-lo para a universidade. No entanto, falido quando o filho era um adolescente, Shakespeare teve de deixar a escola e jamais chegou a iniciar ensino superior. O escritor se casou com Anne Hathaway (que não é a atriz, obviamente por viverem em séculos diferentes) quando tinha apenas 18 anos, enquanto ela tinha 26. O casal teve três filhos, sendo eles, Susanna e os gêmeos Judith e Hamnet.

Por cerca de dez anos, não se sabe o que houve na vida do autor ou de sua família. Os próximos documentos são datados de 1592, quando ele começou a trabalhar no teatro. Sempre ocupado com o trabalho, Shakespeare viveu longe de sua família e não estava por perto quando Hamnet faleceu repentinamente. Em “A Pura Verdade”, que é um filme muito subjetivo e por vezes contemplativo, sugere que o menino tenha morrido de peste bubônica ou que ele tenha se afogado em lago próximo de casa.

Fato é que a perda de Hamnet foi extremamente traumática para toda a família. Mas o roteiro de Ben Elton, em sua própria leitura da vida do escritor, conta que Shakespeare não demonstrou seu sofrimento imediatamente, mergulhando em sua escrita e, só no fim da vida, quando aposentou a caneta, entrou em um luto profundo e tardio, chegando a ser visitado pelo espírito ou pela lembrança do filho. E, então, sob a pele de Kenneth Branagh, que além de interpretar o bardo também dirige o filme, vemos como ele encara a dor da perda do menino, a quem nunca conheceu realmente. É um misto de tristeza, culpa e orgulho. As cenas escuras, iluminadas apenas com luz de velas e a ambientação bucólica e melancólica nos fazem mergulhar mais profundamente em suas emoções.

Shakespeare vê o menino como uma cópia sua. O único de seus filhos a herdar sua genialidade, astúcia e articulação para as palavras. Mas, para seu desapontamento, os textos que o menino lhe mostrava como seu eram, na realidade, de sua irmã gêmea, Judith. No entanto, o pai, que seria quase um misógino (até por conta do conservadorismo de sua época), jamais reconheceu o talento da filha.

Mas isso é ficção. A realidade, pelo menos até onde se sabe, é que nem Anne e nem as filhas de Shakespeare foram alfabetizadas, embora ele seja um dos maiores nomes da escrita de todos os tempos. Um dos questionamentos sobre a autoria de suas obras, inclusive, tem relação com este fato. Afinal, se ele era tão letrado, por que não ensinou as filhas a ler e escrever? Outro mistério era sobre como ele poderia ter tanto conhecimento sobre medicina, direito, caça e até navegação, se não há histórico de que ele tenha estudado tais temas? Como uma única pessoa poderia ter um vocabulário tão vasto ao ponto de usar mais de 20 mil palavras diferentes, sendo que o comum para uma pessoa letrada é 4 mil? Ele foi o homem mais inteligente do mundo ou suas obras foram, na realidade, escritas por vários autores? Talvez jamais saibamos a verdade e tudo que podemos fazer é aceitar a visão dos biógrafos e cineastas sobre sua vida. Deixar a imaginação fluir e simplesmente mergulhar em um dos mistérios mais fascinantes da literatura e do teatro.


Filme: A Pura Verdade
Direção: Kenneth Branagh
Ano: 2018
Gênero: Drama/Biografia
Nota: 8/10