A oficina literária de Liev Tolstói

A oficina literária de Liev Tolstói

“Anna Kariênina”, de Liev Tolstói, foge a uma conhecida convenção do romance — ou, por outra, a maioria dos romances fogem ao padrão antessala de “Anna Kariênina”. Pelo menos, segundo alguns entendidos, nas duas ou três primeiras páginas de um romance “é” necessário apresentar a trama e esboçar os personagens principais. Caso contrário o leitor “perde” o interesse e o romance “naufraga” por falta de interesse, e isto é categórico. Oficinas literárias são cheias dessas dicas, feitas por autoridades no assunto: os ficcionistas atuais. O auditório ouve o conselho e volta para o embate satisfeito, acreditando que aprendeu mais uma infalível “técnica” de escrita. Das duas uma: se o aprendiz Tolstói levasse essa orientação a sério não teríamos “Anna Kariênina”, ou “Anna Kariênina” seria condenada ao fracasso, pelas nossas “autoridades”. É que se trata de uma fórmula relativa, de contexto! Você poderá negligenciá-la, mas o fato de não ser lido não significa que não terá escrito uma grande história. Porque “Anna Kariênina” é uma grande história fora deste padrão.

O melhor conselheiro de um escritor é a leitura, e a leitura mais útil é a dos grandes autores. Lá se aprende técnicas melhor do que em qualquer oficina. Adeptos de oficinas literárias, aliás, se parecem com fiéis da Igreja: poderiam falar diretamente com Deus se ouvissem Mateus 6:6-7, mas preferem ouvir seus dogmáticos intermediários. Talvez o conselho acima, de sacerdotes não canonizados, seja uma exigência de mercado, válida para escritores contemporâneos, pressionados por leitores mais impacientes que os do século 19.

Obviamente, os escritores atuais são pragmáticos o suficiente para entender que com aquela fórmula despertarão interesse em um público cada vez mais escasso. Mas a tal exigência não é válida, porém, para todos os leitores contemporâneos: leitores autênticos não podem transformar fórmulas em verdades absolutas. Não podem fazer aquele tipo de exigência a um ficcionista, porque “Anna Kariênina” — romance modelar — simplesmente não funciona daquela forma. O nome da protagonista aparece na nas páginas iniciais, em um diálogo entre Dolly e seu esposo Stiepan Arcáditch, irmão de Anna. Mas Anna, de fato, é apresentada ao leitor somente depois da história avançar. Nessas primeiras setenta páginas o personagem mais importante é Konstantin Liévin (provável simulacro do próprio Tolstói). Foi isto que chamei padrão antessala: é preciso esperar até que a estrela maior resplandeça.

Monstro estufado, “Anna Kariênina” é na verdade um livro de duas histórias: a de Liévin e a de Anna. Ou, se se preferir, a de dois casos amorosos transcorrendo em paralelo: o de Liévin e Kitty, o de Anna e Vronski, ambos igualmente penetrantes. A confiar na tradução de Rubens Figueiredo, parece que nenhum ficcionista escreve de forma mais simples e ao mesmo tempo mais profunda do que Tolstói. O russo é de uma falsa ingenuidade só comparável a Walt Whitman, na poesia, e quem sabe à Bíblia.

Mas, então, pode-se até dizer que, depois de Anna, Liévin é o personagem mais importante da obra, no mínimo rivalizando com Vronski nessa condição. Tanto é assim que após a morte da protagonista principal, Tolstói ainda acrescenta uma parte de 19 capítulos ao romance, quase toda ela dedicada a Liévin e suas ruminações acerca do sentido da existência. A essa altura Anna não importa mais, porque sequer volta a ser citada em dezenas de páginas. Segundo os entendidos contemporâneos de ficção isto seria um erro, porque “o que isto tem a ver com aquilo?”. Nada, de fato: este final de 55 páginas do romance “Anna Kariênina” existe quase exclusivamente para justificar Liévin, isto é, a história secundária em um livro de duas histórias.

Há pelo menos outro precedente ficcional em que o protagonista permanece em banho-maria, enquanto a narrativa se desenvolve amplamente: o poderoso “Nostromo”, de Joseph Conrad. Nostromo, ou “nosso homem”, é a figura central do romance de Conrad. Porém, parece que não: parece que o personagem principal, pelo menos até o final do primeiro capítulo — aliás bem extenso —, é o explorador britânico Charles Gould. Em um livro cujo conteúdo é a metade do de “Anna Kariênina”, Gould é figura dominante, enquanto o marinheiro italiano é apenas citado por terceiros, praticamente. Nostromo persiste como um coadjuvante interessante, quase uma lenda de Costaguana. Fica parecendo, assim, que um autor pode sugerir um personagem no título e ignorá-lo o quanto quiser, desde que a escrita seja boa o suficiente para prender a atenção do leitor. Desde que o escritor tenha os poderes narrativos de Conrad e Tolstói, tudo bem.

Para os padrões mercadológicas atuais, seria recomendável então que Tolstói, vivendo hoje, desdobrasse seu livro de duas histórias efetivamente em dois livros, ou que sacrificasse Liévin em benefício de Anna, para assim suprir sem demora as expectativas do leitor contemporâneo? Parece que sim. De acordo com Tolstói, esboçar os personagens principais, de saída, soa uma obrigação tão manjada quanto o daqueles escritores que trabalham a partir de fórmulas infalíveis, amiúde acusados de pouco ou nada criativos — ou simplesmente mercenários da indústria cultural. Neste sentido, a chamada alta literatura também tem seus truques pré-fabricados.

Aqui oferecemos apenas um exemplo, para mostrar que nem sempre a perfeição coincide com a eficácia, ou a eficácia comercial com o melhor resultado literário.

J.C. Guimarães

Crítico literário.