Mistérios rondam a natureza humana desde o princípio dos tempos, numa dimensão muito anterior a esta que nos limita e nos condena. Ainda que disponhamos de toda a boa vontade da sorte — ao menos em quadras da vida em que só ela é capaz de remediar o grande mal que se nos abate —, somos sempre nós nossos juízes e nossos próprios carrascos, cabe-nos somente a nós a última palavra e só nossas são a culpa ou a fortuna pelo destino que nos aguarda, por mais que as artes, a ciência, o pensamento filosófico, a religião ocupem-se de proporcionar ao homem todos os recursos quanto a equalizar suas inadequações mais perturbadoras e acender um farol em meio ao oceano de quimeras vãs que nos iludem, nos tragam para o redemoinho de caos e falsas esperanças que nos alimentam e nos dão uma sensação de onipotência só para manifestar a força de seu veneno na primeira oportunidade e ao cabo de uma tortura lenta e silenciosa, nos afogam com a crença tola de ancorar na praia da ventura, lugar mágico, diabólico e santo, onde se daria a transubstanciação do mal em bem.
Como se incompatível ao estar do homem no mundo, a própria felicidade se nos apresenta como um dos tantos perigos da vida. Presa dos mecanismos de repressão e autocensura dos quais nunca consegue se livrar; tentando contornar a dureza do real valendo-se do poder salvífico e intangível da fé; colocando à prova seus limites e seu empenho em tornar reais as mudanças, óbvias ou profundas, de que considera-se merecedor; sempre flertando com a tragédia, à espreita, calada e sedutora, nas curvas mais sinuados do caminho; equilibrando-se sobre o delicado fio que aparta o caos do inferno: em todos os sete títulos que agrupamos na lista abaixo nota-se, de uma forma ou de outra, essa dicotomia invencível da alma humana, mediada pelas circunstâncias inexplicáveis que fazem com que tudo pareça o delírio imanente que paira sobre a existência de cada um em maior ou menor grau. Uma garota doce, mas essencialmente rebelde cujo espírito não se dobra às fronteiras que se permitem enxergar nem às intempéries do viver protagoniza “Destemida” (2023), de Sarah Spillane, história que congrega a obstinação por uma meta, a perseverança quanto a encontrar o meio de levá-la a termo e a coragem de lançar-se ao mar de desafios que se agita à passagem de quem ousa enfrentá-lo. Por outro lado, em “O Pálido Olho Azul” (2022), Scott Cooper faz reviver um dos emblemas das narrativas de suspense a partir de um enredo cujas reviravoltas decerto honram sua memória e dão novo fôlego a essas produções. Reunidos aos outros cinco, “Destemida” e “O Pálido Olho Azul” representam o que o cinema fez de melhor nos últimos catorze meses e constam do acervo da Netflix para que seus assinantes usufruam sem limite desse prazer. Respeitamos o critério de sempre, em ordem alfabética e do mais novo para o de lançamento mais atual, com uma variação mínima de um para o outro, conforme já se disse. Tudo bem mastigadinho, daquele jeito que vocês tanto gostam.

Kenya Barris castiga os costumes e traça um paralelo entre essas duas histórias de horror e vitória, superação e luta em “Certas Pessoas”. Ao passo que capta o zeitgeist, o espírito do tempo, e aprofunda-se nos temas de que se precisa falar com urgência ainda mais flagrante, o diretor consegue imprimir originalidade a assuntos espinhosos como intolerância racial, escravidão, Holocausto e racismo contornando o politicamente correto com a galhardia de que só o humor é capaz. Laureado com diversos prêmios da NAACP (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor), entidade que representa e defende os interesses e a cultura dos negros nos Estados Unidos), Barris não parece se importar nada com a possível impressão que os poderosos tenham dele.

A australiana Sarah Spillane, dispõe de seu roteiro, escrito com Cathy Randall e Rebecca Banner, de modo a conferir a natureza de um mosaico ao enredo da vida de Jessica Watson, indo e vindo no tempo com analepses e prolepses em que se ousa vislumbrar como a futura heroína da Austrália contemporânea enxerga o mundo a sua volta — a começar pelo incentivo diligentemente calculado dos pais, Julie e Roger, de Anna Paquin (que até outro dia era Flora McGrath, a menininha enxerida de “O Piano” [1993], levado à tela pela neozelandesa Jane Campion, e já se tornou uma quarentona cheia de encantos) e Josh Lawson —, esse vendaval indômito que a impele para o mar, a natureza mesma de que se reveste sua humana irrequietude.

O apocalipse vem como se em ondas, arrastando os homens para o centro de eventos sobre os quais não tem nenhum controle, dominado por circunstâncias que tomam-lhe anos até que se esclareçam. O recorte que Patxi Amezcua propõe em “Infiesto” faz de uma catástrofe do nosso tempo, um misto de incúria, negligência, desmazelo e horror, presta-se a alicerce de uma espiral de mistérios, indóceis à vontade de quem se esmera por desvendá-los. A partir de março de 2020, a humanidade passou a ter de acarar o resultado diabolicamente palpável de décadas de degradação ambiental, constituída de uma convivência promíscua e desrespeitosa entre seres humanos e o meio que os acolhe, transformada num genuíno caos à medida que se foram avultando a inépcia e o descaso com que se conduziu o problema.

O mais que alimentamos expectativas, mesmo as que soam brutalmente cimentadas ao chão da vida, mais distantes ficamos do indócil princípio do existir, em que só vale o que de fato se realiza, certeza de que a poesia da adolescência se encarrega de caiar de algum lirismo. Os personagens de “Os Reis do Mundo” incorporam esses paradoxos da vida, especialmente assombrosos na primeira curva da estrada, demonstrando uma evidente inaptidão quanto a se ajustar a vida como ela é, mas também deixando clara sua escolha em permanecer à margem, reproduzindo o padrão de comportamento ensinado pela dureza das ruas, pelo desencanto do existir. A colombiana Laura Mora Ortega tira de seus protagonistas, todos atores diletantes, a essência meio bestial que libertam em cenas tão repletas de violência como de ingenuidade, à luz de um pedido de socorro antes que não reste mais nada.

Existe na natureza de toda criatura uma fração ambivalente, dotada de luzes e sombras, tão cheia de arestas e de reentrâncias, de escarpas e precipícios, que nós mesmos raramente nos aventuramos a ir até lá. O espanhol Oriol Paulo tem tarimba em apresentar narrativas em que a audiência se questiona sobre o que pensa estar absorvendo da história, tão densa a atmosfera de enigma que prima por empregar em seus filmes. No recém-lançado “As Linhas Tortas de Deus”, o diretor não tem cerimônia quanto a acionar sua cornucópia de polêmicas, todas muito bem embaladas por uma trama muito bem conduzida e muito bem ancorada na performance de uma das grandes estrelas do cinema hispânico atual.

“O Pálido Olho Azul” sobrepuja o básico da narrativa de suspense. Socorrendo-se de elementos técnicos, Scott Cooper tem o condão de ressuscitar o interesse por um dos mais ousados escritores de todos os tempos, ao passo que escapa ao óbvio escolhendo fixar-se nos detalhes que seduzem sua audiência, seja pelo olhar, seja pelo que é dito. A impecável fotografia de Masanobu Takayanagi dirime qualquer dúvida quanto as pretensões de Cooper, transportando o espectador para o cenário, tão aterrador quanto lindo, do Vale do Hudson, nas imediações da Nova York de 1830 durante um inverno rigoroso, que se encarrega de tornar o clima especialmente lúgubre.

Talvez a única obviedade de “O Suplente” seja mesmo a excelência, o pluralismo, a genialidade dos filmes argentinos. Depois de um debute estrepitoso no Festival Internacional de Cinema de Toronto, o TIFF, no Canadá e provocando ainda mais rebuliço na premiação de San Sebastián, na Espanha, o trabalho de Diego Lerman foi seguindo uma trajetória constante de um encantamento reflexivo ao capturar o espírito do tempo, de implacável crítica às perenes desigualdades sociais, mais ou menos equivalentes ao redor do mundo, e moldá-lo a um recorte muito íntimo da vida em sociedade a partir de um universo cheio de idiossincrasias sobre a dureza de ter por ofício a educação num mundo cada vez bestial.