Ignorado pela crítica e amado pelo público, suspense com Tom Hanks, na Netflix, vai te deixar sem fôlego Divulgação / Columbia Pictures

Ignorado pela crítica e amado pelo público, suspense com Tom Hanks, na Netflix, vai te deixar sem fôlego

De todos os adversários que a Igreja é obrigada a combater, a desinformação e o preconceito talvez sejam os mais ferozes. Ron Howard absorve a natureza paradoxal da essência do ser gente — ávida por encontrar a salvação, ainda que procure nos lugares errados, mas tão cheio de uma inexplicável e tola autoconfiança, mesmo diante de descaminhos perigosos. Baseado no romance de Dan Brown, publicado em 2000, “Anjos e Demônios” tenta esmiuçar, entre outras façanhas, o que pode haver de tão arrebatadoramente sedutor na crença do homem em sua superioridade, a ponto de levá-lo a fundar seitas e agremiações que o distingam dos outros, de preferência sem que tenha de abdicar dos privilégios que foi garantindo no transcurso de uma vida inventada.

Passados três anos da estreia de “O Código Da Vinci” (2006), a coleção de diatribes heréticas embaladas em marketing grosseiro assinadas por Brown que Howard conseguira transformar num dos maiores campeões de bilheteria da década, o diretor torna a mirar as obsessões do escritor — de quem também extraiu material para “Inferno” (2016), que os iniciados trataram de desancar, muito em função da escolha de se centrar energia numa visão maniqueísta e capciosa do catolicismo, também presente nos outros dois, porém muitíssimo mais diluída. Aqui, o diretor conduz o roteiro de David Koepp e Akiva Goldsman, também responsáveis pelo texto algo mordaz e inquestionavelmente pleno de referências históricas a exemplo do que é visto na produção que encerra a trilogia, a uma crítica tépida ao gosto do clérigo católico por ostentação e sua maldisfarçada indiferença pelo que acontece para além dos muros do Vaticano, um dado da realidade com o qual parece ter pudores de lidar. Por outro lado, as tragédias íntimas e coletivas que precedem o mais grotesco apocalipse emergem graças à habilidade de Howard em administrar o caos e os atentados à lógica que, se chegam a provocar risos involuntários, acirram o sentimento de claustrofobia, de angústia, de desamparo.

Robert Langdon, o simbologista vivido por Tom Hanks, continua investido das missões de que só ele pode ocupar, mesmo que esteja em trajes menores, muito absorto pelos encantos de uma piscina numa tarde escaldante. Langdon, novamente, deixa Harvard a fim de solucionar outras das intermináveis crises a envolver os prelados de Roma, mas dessa vez, claro, tudo soa deveras peremptório. Um breve flashback lança o público de volta à sequência de “O Código Da Vinci” em que um recipiente hermeticamente lacrado contendo uma tal antimatéria é roubado do Grande Colisor de Hádrons do CERN, o Centro Europeu para a Pesquisa Nuclear, sediado em Genebra, na Suíça. Depois de uma explicação um tanto ligeira, o diretor crava como responsáveis os Illuminati, ajuntamento de sociedades anônimas que agem dentro da própria Igreja numa defesa extremista da ciência, contra o obscurantismo religioso e a interferência clerical no Estado, sobretudo na Europa.

Howard entra nos conflitos político-ideológicos nos intestinos do Reino de Pedro citando a morte de um papa progressista e carismático que morre subitamente, quiçá uma menção a João Paulo 2° (1920-2005), e a bateção de cabeça do conselho cardinalício quanto a expelir a fumaça branca e o nome do sucessor. Também os cardeais correm perigo, e nesse vácuo surge a figura do camerlengo, de Ewan McGregor, essa, sim, uma referência explícita ao pontífice polonês, a própria encarnação da santidade possível na terra. Sim, o filme é uma coleção inexpugnável de clichês e, sim, quem não é iniciado, com a licença do trocadilho, ou nas questões mais claustrofóbicas da Igreja ou nos livros de Dan Brown fica no sereno. Contudo, “Anjos e Demônios” vale pelo apuro do espetáculo cênico, mormente na sequência em que o personagem de McGregor é promovido de Karol Józef Wojtyła a Jesus Cristo, oferecendo-se como o próprio cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. Eu chorei, por isso tenho para com o diretor um pouco mais de misericórdia cristã.


Filme: Anjos e Demônios
Direção: Ron Howard
Ano: 2009
Gêneros: Mistério/Thriller
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.