Li “O Passageiro”, de Cormac McCarthy, e gostei. Na verdade, gostei demais. Tenho uma tese pessoal. A partir dela falarei do livro que, independente de opiniões, é um clássico literário instantâneo. Nos grupos de conversa, em geral, as pessoas gostam de falar sobre diversos assuntos. Uns mais que outros. Destacam-se temas como política (que eleva os ânimos), história, música, cinema, literatura e arte. Estes são bastante populares. Dificilmente veremos pessoas tendo discussões empolgadas ou calorosas sobre física, química, engenharia nuclear e outras áreas das ditas ciências duras. A explicação é simples. Esses temas são complexos, chatos, enfadonhos. São difíceis de falar e entender. A conversa não evolui e os ouvintes, com seus rostos plácidos, apenas balançam as cabeças, esperam ansiosos que interlocutor termine, e elogiam a eloquência do falante para, em seguida, mudarem de assunto. “O Passageiro” é sobre isso. Cormac, um gênio lúcido de 89 anos, distribui, com personalidade e propriedade, informações sobre amplos temas, inclusive, física quântica. E mais, sem cometer erros. É, naturalmente, mais seguro quando fala de história, mas como provou em “Meridiano de Sangue”, McCarthy fala de coisas complexas com maestria e sabe enredar o leitor em seu universo mostrando que toda informação que explora é útil e faz sentido.
“O Passageiro” é sobre pessoas e uma pessoa. É sobre solidão e amizade. Sobre a manifestação de um mundo que tende à melancolia e, por seu pessimismo e finitude, efêmero. As nuances da natureza, seu entendimento e a compreensão de que o enredamento da amizade não nos exclui de termos que enfrentar os limites da vida sozinhos é a base do romance e seu maior trunfo. As definições dos tipos, que são muitos, suas ações e comportamentos, suas funções, exploradas à exaustão, presentes no texto, é, ao mesmo tempo, o fio da história e o conhecimento íntimo do autor sobre as mais interessantes e improváveis personalidades. É o caso de figuras emblemáticas e inesquecíveis, tais como Long John e Borman. O primeiro pela sua brutal interpretação da existência e escassez de vida e o outro pelo entendimento sujo, pessoal, cômico e equivocado da amizade. “Você é um filho da puta? Eu? Sem dúvida. Cem por cento? Cem por cento. Folheado a ouro em com garantia.”
O que mais impressiona neste McCarthy é o esboço inédito feito para a redefinição do termo alma gêmea. Por meio de uma investigação cuidadosa da loucura, penetrando em um universo caótico e sofisticado, o velho Cormac interpreta a mente de uma garota, que impedida de ser espontânea, jovial e livre, convive com as personificações de seus medos, como entes visuais de carne e osso, que desempenham papéis sinistros de controle e tem os comportamentos que ela deveria ter, caso fosse uma pessoa normal. E extrapola, como quem sonha com um ente querido que não vê há tempos, quando mostra que a personagem principal compactua com o universo da loucura da garota, sua amada, e tem os mesmos devaneios insólitos, com os mesmos indivíduos oníricos. Separados por um infortúnio, ainda são íntimos.
No final entendemos, pelo menos nessa primeira parte (o livro é um de dois), que nem os amigos, nem o amor. Nos moldes de Todos os belos cavalos, seu herói ainda vive sozinho, rígido e à margem.
Livro: O passageiro
Autor: Cormac McCarthy
Tradução: Jorio Dauster
Páginas: 392 páginas
Editora: Alfaguara
Nota: 10/10