Por sua significância histórica, inicio este artigo fazendo menção ao jesuíta José de Anchieta (1534 – 1597), que, por encomenda do seu superior hierárquico Manuel da Nóbrega, inaugurou, com os seus autos moralizantes, a dramaturgia colonial brasileira, no século 16. Longe de ser um Gil Vicente de batina, o estrategista São Anchieta inspirou-se no teatrólogo lusitano para adaptação de temáticas autóctones, com objetivos civilizatórios. É fato que falhou esteticamente na construção de seu teatro pedagógico; entretanto, o demiurgo Anchieta instaurou a metodologia da persuasão religiosa, por intermédio das encenações teatrais, como instrumento de dominação do imaginário dos silvícolas ameríndios e toda sorte de degredados e aventureiros que atravessaram o Atlântico em busca de “fazer a América”.
Eis que a arte teatral de José de Anchieta se predispõe a capturar o inconsciente coletivo do público espectador, a partir da abordagem dos capítulos mais espinhosos da colonização lusíada: rituais antropofágicos; consumo do cauim; ambiência poligâmica.
Neste sentido, constata-se que a Companhia de Jesus irá cumprir com a função do aprisionamento do ideário bárbaro, segundo as prédicas da Coroa Portuguesa e do Cristianismo, através das representações cênicas de caráter didático e intimidatório. Destarte, nota-se que as primeiras manifestações culturais tupiniquins — o teatro e música —, contraditoriamente, serão introduzidas sob a égide da metodologia da opressão. A experiência dramática irá originar a reação do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, sob inspiração de Paulo Freire. Do revolucionário autor pouco se diz de sua obra teatral, de vez que o diretor suplantou o dramaturgo Boal. Cabe explicitar que o caráter ideológico do documento político do musical “Opinião”; e, sobretudo da trilogia “Arena Conta Zumbi”, “Arena Conta Tiradentes” e “Arena Conta Bolívar”, pode ter influenciado a crítica especializada a considerá-lo, quiçá equivocadamente, um teatrólogo panfletário.
Não obstante, entre o religioso José de Anchieta e o intelectual ativista Augusto Boal, há toda uma História do Teatro Brasileiro a ser analisada. Neste caso, há de se afirmar que o fidedigno fundador das artes cênicas brasílicas vem a ser Antônio José da Silva, o Judeu. Embora a sua produção tenha sido feita em Portugal, o teatrólogo Antônio José, nascido em São João do Meriti, se faz representar pela crítica social aos costumes metropolitanos, muito possivelmente advindos de sua condição judaica de imigrante. Neste contexto, o dramaturgo luso-fluminense escreveu “Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança” (1733) e “Guerras do Alecrim e da Manjerona” (1737), entre outros registros cênicos. O comediógrafo marrano se notabilizou por sua pena satírica e corrosiva, que o condenara ao fogo-fátuo do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição.
No século 19, é preciso atentar para a obra teatral de Martins Pena e Artur de Azevedo. O dramaturgo Luís Carlos Martins Pena nascera no Rio de Janeiro, em 5 de novembro de 1815, tendo falecido em razão da tuberculose aos 33 anos, em Lisboa. Sendo autor das comédias de costume “Juiz de Paz na Roça” (1837), “Quem Casa, Quer Casa” (1945) e “Judas em Sábado de Aleluia” (1844), esta última, a meu ver, a sua obra-prima, Martins Pena se caracteriza pela agilidade na construção do diálogo, que cria situações hilárias entre personagens, que retratam a sociedade brasileira através da galhofa forjada pela leveza e ingenuidade românticas. Aliás, dentre tantos autores consagrados que se disponibilizaram a escrever teatro no período, entre os quais José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Castro Alves, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Machado de Assis, o precoce Martins Pena se inscreve como o talento dramatúrgico mais original do Romantismo pátrio. Outro destaque do século 19 vem a Artur Azevedo, mestre da percepção dialógica, que se propõe ao ofício da análise da alma humana pela irreverência e o humor. Assim como o seu irmão Aluísio de Azevedo, o autor maranhense que escreveu “A Capital Federal” (1859), seu texto mais aclamado, e também “O Mambembe” (1904) e “A Almanjarra” (1888). Ainda que tenha se dedicado a outros gêneros literários, o comediógrafo Azevedo é dramaturgo por excelência; e a sua assinatura se perfaz por um conteúdo que se baseia no cinismo e na hipocrisia pelo viés do caricaturesco humano.
No século 20, o teatro brasileiro se enrobustece com o surgimento do modernista Oswald Andrade com o seu pouco consistente teatro de vanguarda (vide: O Homem e o Cavalo” (1934), “O Rei da Vela” (1937) e “A Morta” (1937)); e de dois gênios da dramaturgia: Nelson Rodrigues e Ariano Suassuna, que são responsáveis por obras distintas, mas que dialogam com a tradição milenar da representação cênica, dos tragediógrafos gregos Eurípides, Ésquilo e Sófocles aos romanos Sêneca, Plauto e Terêncio, sem perder de vista a Commedia Dell’arte. O pernambucano radicado no Rio de Janeiro vem a ser autor do maior clássico das artes teatrais de cunho nacional: “Vestido de Noiva” (1943), seguido de muito perto pelo paraibano Suassuna, que assinará o antológico “Auto da Compadecida” (1955). No caso do Anjo Pornográfico, ainda haverá a escrita da obra “Anjo Negro” (1946), magistralmente concebida pelo magnífico criador de “Álbum de Família” (1946), “Perdoa por me Traíres” (1957), “Os Sete Gatinhos” (1958) e “Bonitinha, mas Ordinária”(1962), o que faz de Nelson Rodrigues, pelo conjunto da obra, o maior teatrólogo brasileiro de todos os tempos.
Sem dúvida que Ariano Suassuna se posiciona na segunda posição do ranking da dramaturgia nacional, porque além de sua obra principal, o “Auto da Compadecida”, escreve ainda em alto nível “O Santo e a Porca” (1957) e “A Farsa da Boa Preguiça” (1960). É imprescindível compreender a História do Teatro para decifrar o diálogo do autor de A pena e a lei (1959), com os grandes mestres da dramaturgia universal, a fim de que o espectador/leitor interpenetre na mensagem por detrás da linguagem simples extraída da literatura de cordel. No bojo destes teatrólogos nordestinos, surge-nos Alfredo Dias Gomes com “O Pagador de Promessas” (1959). Registro originalíssimo que retrata o sincretismo religioso, como instrumento de resistência política. Mesmo sendo um Bertolt Brecht e um Bernardo Santareno de menor vulto dramatúrgico, o baiano Dias Gomes se utiliza da mesma ferramenta metafórica do retorno ao passado histórico, recorrentemente, empregada pelos teatrólogos para se discutir a realidade coeva. Por fim, cabe enfatizar que faz uso deste recurso cênico empregado em “Mãe Coragem e seus Filhos” (1941), de Brecht, na sua peça “Santo Inquérito” (1966), para denunciar a opressão e a tortura nos porões da ditadura cívico-militar pós-64.
Neste último parágrafo, trataremos de dois exímios esculápios da constituição do diálogo: Plínio Marcos e Bosco Brasil. O primeiro se pauta como porta-voz dos marginalizados, a partir da interpretação de uma parcela da sociedade invisível que luta (e sonha) com a perspectiva do flagelo de se adquirir um sapato para calçar os pés descalços de um país covarde, que não se dá conta do coice social da elite opressora e sangrenta. A obra-prima “Dois Perdidos Numa Noite Suja” (1966) vem a ser a síntese da coerção sobre o indivíduo brutalizado pela indigência moral e física, apregoada pelo martírio da miséria. Não obstante, o nocaute do soco no estômago de Plínio Marcos se dá com “Navalha na Carne” (1969), que registra, através de uma linguagem crua e violenta, a exploração despótica entre os próprios oprimidos, o que se afigura na imagem do homossexual e da prostituta.