Miles Davis, a autobiografia

Miles Davis, a autobiografia

Não gosto de jazz. Não gosto ou não o entendo, sei lá — pouco distingo um saxofone bem assoprado de qualquer muzak de quinta categoria. Salvam-se umas coisinhas aqui e ali, pois até a minha ignorância tem limites, creio eu (tem?). Digamos “Bitches Brew”, do Miles Davis, que não deixa nunca de me espantar.

Miles Davis
Miles Davis: A Autobiografia, de Quincy Troupe (Belas-Letras, 576 páginas)

Miles. Nasceu, o nosso Miles, num 26 de maio e no longínquo 1926. O crime de ter sido trompetista eu posso perdoar com a atenuante de sua extraordinária personalidade. O homem foi doido, quando ser doido era necessário, e nada de doido meia-boca, do tipo sin perder la ternura jamás: ultrapassou limites que não se ultrapassam. Quando cansava de si ou perdia dinheiro, reinventava-se (reinventar-se, como ter coragem, é a forma suprema de elegância). Elegante, eu disse? Sim, na forma de viver (incluída a loucura), na maneira de se vestir, na pose em palcos — há fotos suas numa delegacia, com a cabeça rachada por um cassetete de algum policial racista, em que nada na roupa de corte perfeito parece ter sido alterado, apesar do sangue no paletó. Sem contar que ele namorou Jeanne Moreau, outra elegante, assim mesmo, com rima rica; imagino que a conheceu quando compunha a trilha sonora de “Ascenseur pour l’échafaud”. Miles ahead, always.

Foi quase um Frank Sinatra; “quase” porque Frank era… bem, era Frank. Um pecadilho menor que se permite a todos nós que não somos Frank Sinatra. Com essa ressalva mínima, homenageio o grande Miles com sua autobiografia, ela também elegante como um trompetista, sóbrio ou chapadão, numa Montreux qualquer deste mundão que se enfeia a cada Miles que perdemos.

Marcelo Franco

é promotor de Justiça. Instagram: @marcelofrancodeassis