“Poeira” é uma ode ao sonho e ao anseio de fazer da vida uma viagem para longe da monotonia — ainda que não se opte exatamente pelo jeito mais recomendável e esbarre-se com uma infinidade de percalços pela estrada. É essa a impressão mais ligeira no filme de José María Yazpik, que também protagoniza essa história. Chato, um sujeito um tanto desvairado, inconsequente, boêmio, mas sempre sóbrio e, principalmente, lúcido, capaz de farejar a hipocrisia que grassa em sua terra — e, com o dedo em riste, afrontá-la, valendo-se do cinismo que acaba por redimi-lo — passara dez anos vagando pelo mundo, à custa de aventura, propósito, razão de viver, volta ao pueblo de San Ignacio Mulegé, na Baixa Califórnia do Sul, um éden decaído num pré-histórico 1982, de onde saíra quase expulso, humilhado, ridicularizado por querer tornar-se ator em Hollywood. Dez anos é muito pouco para que se apaguem tanto opróbrio e tanta mágoa, e o pulo do gato ao longo dos sucintos 87 minutos de projeção é a maneira como Yazpik transita pelas inconsistências de seu personagem, frequentando todos os núcleos — das casas de famílias respeitáveis ao lupanar da cidadela —, determinado a levar a termo sua missão. Sem nunca se dobrar.
No texto do diretor-protagonista, escrito a quatro mãos junto com Alejandro Ricaño, tem-se por decidido que Chato sabe-se desde há muito irremediavelmente perdido, miserável numa terra que não o merece, convicto de que meteu-se com a pior espécie de bandidos que atormenta o gênero humano, condenado a repisar velhas práticas e desenterrar os arcaicíssimos costumes que o matam, mas não sem antes locupletar-se de todas as vantagens de que for capaz, provando que aprendeu a lição. Quatro décadas atrás, Pablo Emilio Escobar Gaviria (1949-1993) conseguia multiplicar seus narcocartéis num ritmo invejável mesmo para grandes corporações com muita quilometragem no transcurso dos pedregosos caminhos do capitalismo, ao redor de todo o planeta. Naquele pedaço sem lei do México, delinquentes do coturno de Escobar fomentavam um misto de desprezo e admiração, mormente depois que se tornou pública a informação de que ganhara dois bilhões de dólares americanos em pouco mais de cinco anos — o traficante tivera o condão de multiplicar essa fortuna inicial por quinze, e ao morrer, um dia depois de completar 44 anos, em 2 de dezembro de 1993, contava então 30 bilhões de dólares, como descreve Fernando León de Aranoa em “Escobar — A Traição” (2017). Essa é a deixa para que Yazpik encaminhe a história para a narrativa marcada pela picardia em que o enredo passa a se desdobrar.
O acontecimento nada ordinário que leva Chato de volta a San Ignacio presta-se, outrossim, a revelar quem na verdade havia se tornado — não obstante sua generosidade fosse poderosa o suficiente para fechar os olhos de seus antigos vizinhos ao bom senso e à realidade, o que não deixa de ser uma surpresa para ele. Nem mesmo Jacinta, o amor de juventude, interpretada por Mariana Treviño, inspira-lhe confiança — e a dissolução de um grande segredo que uniria os dois os aparta irremediavelmente.
Numa sátira ora ácida, ora melodramática aos políticos, ao clero, aos coronéis, aos poderosos de turno, enfim, a força da mensagem de “Poeira” cobre tudo e transcende fronteiras, se constituindo um aviso perene e cheio de urgência acerca do amor incondicional: de uma mulher por um criminoso, de delinquentes de todas as categorias pelo poder, dos donos do poder pelo dinheiro. A César o que é de César.
Filme: Poeira
Direção: José María Yazpik
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10