Como o fizera na crônica sobre os 12 melhores poetas da literatura brasileira contemporânea, neste artigo irei discorrer sobre os 12 melhores letristas “vivos” do sexo masculino da MPB. Conforme afirmado anteriormente, a seleção obedeceu a critérios de avaliação exclusivamente particulares. Preâmbulo feito, inicio a escalação dos poetas compositores, com, a meu ver, o mais inspirado de todos os tempos em território nacional: Chico Buarque de Hollanda. Menestrel da alma feminina, que traduz a condição humana com a eficácia de um artífice da exatidão do vocábulo. Primaz do verso metrificado faz de “Construção”, a sua profissão de fé. Metaforicamente, os versos dodecassílabos ou alexandrinos deste poema-letra se arvoram ao retrato do drama social do operário, já encontrável na poesia de Vinicius de Moraes, ao mesmo tempo em que se propõe ao metalinguístico da tessitura do ofício literário que o título indica:
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.
A letra-poema “Construção” vem a ser obra-prima de Chico Buarque, entre tantas pérolas de seu repertório, que impressiona pela multiplicidade temática, desde os primórdios sambistas ao escopo de consolidação da MPB, onde o espaço urbano se alia ao contexto da mensagem socialista, em disfarces metonímicos da ambiguidade. Contemporâneo da Tropicália, o trovador Buarque de Hollanda que, a princípio, se distanciou da proposição antropofágica à Oswald de Andrade, opta pela aproximação com os bambas Ismael Silva e Cartola. Curiosamente, o gênero samba se coaduna com a antropofagia simbólica, ao ‘devorar’ a cultura musical estrangeira, de modo a, intuitivamente, se inaugurar a construção da nacionalidade, consoante o bardo Manuel Bandeira demonstrou ao modernista Mário de Andrade, numa visita-guiada ao Estácio de Brancura, Bide, Baiaco, Mestre Rubem, Nilton Bastos etc.
Paralelamente a Chico Buarque, os poetas-letristas da Tropicália, Caetano Veloso e Gilberto Gil, se instauram como intelectuais que filtram a cultura ocidental, em diálogo com a influência do Oriente no bojo do movimento hippie dos fins da década de 60. Embora no primeiro momento do Tropicalismo, os responsáveis pela poesia cantada fossem Torquato Neto e José Carlos Capinam, sobretudo o camaleônico Caetano Veloso irá tomar as rédeas da liderança e da assinatura poética do movimento. Ao contrário do autor de “Construção”, a sua obra-capital se pulveriza por múltiplas perspectivas de abordagem, que deságuam no neobarroco de “O quereres”, ao sotaque concreto de Haroldo de Campos, sem perder de vista a religiosidade afro-brasileira. Por esta razão, o multifacetado Caetano Veloso é o poeta que se reencarna em letrista, metafisicamente, dando ao verso forjado em mármore de carrara os timbres de brasilidade universal, tão almejado pelo modernismo.
Ao lado do fiel-escudeiro Gilberto Gil, Caetano orienta o Carnaval e vem a ser o autor da mais linda declaração de amor em forma de música:
“Fonte de mel
Nos olhos de gueixa
Kabuki, máscara
Choque entre o azul e o cacho de acácias
Luz das acácias
Você é mãe do sol
A sua coisa é toda tão certa
Beleza esperta
Você me deixa a rua deserta
Quando atravessa
E não olha pra trás.
O astrólogo da ancestralidade, Gilberto Gil, também não ficará atrás quando o assunto for o endeusamento natural da fotossíntese feminina: “Tendo tudo transcorrido / Flores e frutos da imagem / Com que faço essa viagem / Pelo reino do teu nome / Ó, Flora”. Suntuoso poema sussurrado ao exímio violão, que transpassa os tons do cancioneiro popular, para afigurar-se em exaltação elegíaca em bela homenagem à musa-amada. De outra feita, a obra poético-musical de Gilberto Gil se perfaz por igarapés e tentáculos múltiplos, que abarcam os ritmos da contemporaneidade, do rock-reggae aos tambores d’Áfricas.
Dos Alpes Mineiros, à luz de Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, insurgem-se os (neo)inconfidentes Márcio Borges, Ronaldo Bastos e Murilo Antunes, órfãos de Fernando Brant, o contratador de diamantes poéticos. Imagino o vate Borges como uma espécie de Cláudio Manuel da Costa, co-autor das Cartas Chilenas coevas e hodiernas, pós-árcade ávido por orquestrar o Clube da Esquina, para além-horizonte do Curral Del-Rey. É o trovador das Minas Gerais e cultor da Inconfidência Mineira contemporânea, que, da boêmia Santa Teresa, refundiu a República d’Ouro de Aleijadinho, em forma de canção:
Noite chegou outra vez de novo na esquina
Os homens estão, todos se acham mortais
Dividem a noite, Lua e até solidão
Neste clube, a gente sozinha se vê, pela última vez
À espera do dia, naquela calçada
Fugindo pra outro lugar.
O capitão-mor de milícias Márcio Borges municiou o libertário Milton Nascimento de letras poéticas (Vide: “Liberdade buscar na mulher / Que você encontrou”), que desembarcaram no “Cais” de Bastos ao nortear a “Nascente” de Antunes, expoentes da celebração do rito antropofágico. Não obstante, os talentosos Ronaldo Bastos e Murilo Antunes se fazem representar por uma imprescindível marca de originalidade, o que contribuirá para habilitação do movimento musical Clube da Esquina a se ramificar como gênero musical. O niteroiense Ronaldo Bastos irá solidificar a sua prolífica obra com a parceira de Beto Guedes, ao passo que Murilo Antunes se aninha ao mavioso canto de Flávio Venturini e ao violejo encantatório de Tavinho Moura:
Clareia, manhã
O sol vai esconder a clara estrela
Ardente
Pérola do céu refletindo teus olhos
A luz do dia a contemplar teu corpo
Sedento
Louco de prazer e desejos
Ardentes
O extraordinário Paulo César Pinheiro, gênio da palavra cantada, que vem a ser ainda mais versátil do que Chico Buarque, surge-nos mui precocemente com a composição “Viagem”, em parceria com João Aquino, se inscreverá como letrista magnífico: “Oh! tristeza me desculpe / Estou de malas prontas / Hoje a poesia / Veio ao meu encontro / Já raiou o dia / Vamos viajar”. Destarte, o Menino rosiano que, aos 13 anos, teceu tais versos de maestria, de fato, não poderia mesmo deixar de ser considerado genial. A partir desta experiência juvenil, Paulinho Pinheiro, para os íntimos, se subscreve nas páginas da História da MPB como o mais fecundo compositor em atividade no país:
Oh! Poesia me ajude
Vou colher avencas
Lírios, rosas, dálias
Pelos campos verdes
Que você batiza
De jardins do céu.
Lindos versos consagrados ao poeta, como instrumento do lirismo que o catapultara a categoria de parceiro de Pixinguinha, Baden Powel e Antonio Carlos Jobim: “No jardim das rosas de sonho e medo / Pelos canteiros de espinhos / e flores / Lá, quero ver você / Olerê, Olará, você me pegar.” Em diálogo com o versejar político de “Matita Perê”, o emblemático César Pinheiro se enquadra na confissão de Clarice Lispector, que diz: “gênero já não me pega mais”, na narração de “Água viva”.
Entretanto, “Eu hein, Rosa”!, mais guimarãesrosiano do que o autor de “Desenredo” só mesmo o sertanejo Elomar Figueira de Mello, homem-raiz do Verbo bíblico no sentido do nascituro. Mandioca do brejo-sertão do espírito humano, a se adentrar pelo labirinto-Minotauro da linguagem. O cantador Elomar, fruto dos enigmas provindos marcos (cordéis elitizados) nordestinos, transportará para a letra-poema da cantilena de cego ao realejo de Augusto dos Anjos, sem o cientificismo vigente, porém. Por se notabilizar amansador de burro bravo do vocábulo, Elomar transgride-se ao verso da cantoria, por intermédio da oralidade erudita em sua subscrição lírica. Córrego de magnificências em incelenças artesanais de trabalho das carpideiras do sertão nordestino:
Josefina, sai cá fora e vem vê
Ó os forro ramiado vai chuvê
Vai trimina reduzir toda criação
Das bandas de lá do ri’ Gavião
Chiquera pra cá, já roncô o truvão
Futuca a túia, pega o catadô
Vamo plantar o feijão no pó.
Do mundo do samba, dois poetas-letristas se notabilizam pelo diálogo com o passado histórico, de maneira que Martinho da Vila e Ney Lopes, cada qual ao seu modo e estilo, se impõem pelo sotaque da malandragem. Da Região Serrana, o ourives Martinho da Vila irá lapidar o gênero dos bambas, em cadência das congadas e das Folias de Reis. Contudo, a sua voz antigutural transcenderá aos regionalismos, ao se reportar à escritura do verso não apenas como fonte de inspiração. A poesia assoprada do vascaíno Martinho é ferramenta de representação étnica da senzala/favela, que dos morros cariocas se faz embarcação-negreira que, inversamente, aporta das Angolas e dos Moçambiques, que nos irmanam tacitamente. Porta-voz da Lusofonia. Embaixador do Ministério das Relações Interiores.
O rei-nagô Ney Lopes, tranca-rua das bifurcações da raça negra. O preto-velho, a-discricionário e dicionáristico, vem a ser o menestrel dos subúrbios não historiados. À boca-miúda, o griot das batucadas de macumba se alimenta da tradição rememorada oralmente para registro dos timbres e compassos ancestrais em chão de terreiro. Mestre de cerimônia do jongo e do partido alto se que inscreve pelo solfejo das progênies miscigenadas dos trópicos. O eclético Paulo Sérgio Valle, autor da letra da música mais executada por estes sítios ao sul do Equador, “Evidências”, com a sua “viola enluarada” — esta que vem a ser também o criador da mais inspirada metáfora da MPB —, transita pelo jazz com parceiro do irmão bossanovista Marcos Valle até o gênero sertanejo. Portador de impressionante fecundidade artística, o letrista se amolda ao estilo que acolhe as suas palavras, desde o âmbito político ao pagode melódico.
Enfim, eis o coringa Chico César, múltiplo e irrequieto, alquimista da fonética, bom conhecedor do jogo de xadrez das imagens, carrega consigo antíteses barroquizantes, que humanizam o divino juramentado, ao passo que se predispõe a manusear o barro do humano ao sacralizá-lo. A sensibilidade aguçada do Aedo da Paraíba se instaura pelo vozeio cantante do cordel, ao mesmo tempo em que se achega ao murmurejo do trocadilho de mais alto nível poético: “E os sem amor, os sem teto / Os sem paixão sem alqueire / No peito dos sem peito uma seta / E a cigana analfabeta / Lendo a mão de Paulo Freire.” Nestes versos belíssimos, o trovista Chico César toca no cerne da antítese, assim como, em “Estado de poesia”, intenta-se por desbravar os sertões das escrituras, em camuflagem do deus Eros ou Cupido:
É belo vês o amor sem anestesia
Dói de bom, arde de doce
Queima, acalma
Mata, cria
Chega tem vez que a pessoa que enamora
Se pega e chora do que ontem mesmo ria
Chega tem hora que ri de dentro pra fora
Não fica nem vai embora
É o estado de poesia.