Não se bate em professor nem com uma flor

Não se bate em professor nem com uma flor

Papo de quem está ficando velho: sou de um tempo em que os alunos se apaixonavam pelos professores. No duro. Tipo curtir dor de cotovelo, chorar pelos cantos da casa ou pensar em se matar no jardim de infância. A primeira paixão arrebatadora foi por minha mãe que, aliás — pobre coitada! — era também uma professora de escola pública, em cujas tetas ptóticas combalidas armei acampamento para sugá-la como um parasita durante meses a fio. Nada é tão bom que dure para sempre. Então, num triste dia, acabou a mamata e fui obrigado a migrar para mamadeiras de piroca, ou melhor, para mamadeiras de plástico preenchidas com leite de vaca em pó e farinha láctea. Nada mal o sabor, embora, incomparável às chupetas anatômicas da minha progenitora.

A segunda paixão foi pela professora do segundo ano do ensino fundamental que, naquela época, era chamado de ensino primário. Pastores ainda não tinham criado a falácia do kit gay. Primariamente, no auge dos seis anos de idade, eu planejava me casar com ela e vivermos felizes para sempre, sem o rigor do horário, sem os castigos pedagógicos e sem as famigeradas lições de casa. O sentimento famélico girava resoluto numa esfera extra-láctea eminentemente platônica. Mas, alegria de pobre — todo pobre sabe — dura pouco. Meu sonho de concubinato precoce ruiu ao receber o trágico comunicado de que a musa escolástica era casada com um engenheiro florestal com cara de malvado.

Foi lenha para mim. Me deu uma vontade danada de derrubar uma árvore, mas, eu era apenas uma criança, não tinha aprendido a devastar com os mais velhos. Mesmo assim, por birra, pisei numa roseira e suportei a dor da traição — e do espinho fincado no pé — com a galhardia de um menino. Vieram outras paixões platônicas, 98% delas não correspondidas — graças a Deus, ou alguém acabaria acusado de pedofilia contra mim — nada tão forte, contudo, que se comparasse ao amor que eu sentira pela gaga pedagoga. Os anos se passaram como um estouro de boiada sobre a floresta amazônica. Eu cresci e o mundo cão se apresentou para mim de forma compulsória, aterradora.

Tem poucos dias, encontrei-me com uma amiga, uma poeta que trabalha como professora, tatuadora e digital influencer — afinal, nenhuma pessoa, por mais influentes que conheça no círculo social, consegue sobreviver de vertigem, de literatura e dos enfadonhos recitais de poesia falada — a qual migrou recentemente para uma pequena cidade turística do litoral nordestino, “um pedaço do paraíso”, como ela gostava de dizer só para humilhar e passar vontade em quem morava no calorento cerrado goiano. A moçoila contou-me que o casebre onde residia estava sofrendo uma série de atentados violentos na calada da noite. Os vândalos já tinham feito algazarra, soltado rojões, defecado sobre a calçada, pichado o muro da casa, quebrado o portão a pontapés e, até mesmo, arrancado as flores do jardim. Lavar toda aquela merda, pintar o muro e soldar o portão, ainda ia, tudo bem, era coisa que se arranjava; agora, recolher as flores murchas — coitadinhas! — e jogá-las numa lata de lixo era de partir o coração de uma mulher sensível que amava as plantas e os animais. Isso talvez explicasse o fato de preferir morar sozinha.

Os ataques aconteciam de madrugada. Tudo de forma muito rápida, misteriosa, sem deixar pistas. A polícia civil fora avisada dos graves fatos ocorridos, mas, o delegado parecia um tanto letárgico, indolente e pouco disposto a desperdiçar o próprio tempo com ocorrências de natureza fútil, levando-se em conta que ninguém, além das plantas, havia se ferido. A priori, a moça não possuía inimigos na cidade. Não que soubesse. A professora de olhos agateados, de tez apecegada e de elevada envergadura poética — alguém por quem, não apenas crianças de seis anos, mas, marmanjos e marmanjas experimentados cairiam facilmente em miséria — confidenciou-me que estava com medo de ser ferida ou coisa pior.

Esperava-se uma reunião extraordinária para os próximos dias, envolvendo a doce docente, o ordinário secretário municipal de educação e o próprio prefeito. Entretanto, corria à boca miúda pelos corredores da escola que o boçal chefe do executivo andava fulo da vida ao saber que a professora não era flor que se cheirasse, pois, andava metida com aquele pessoal de esquerda e, fazia tempo, mostrava-se afeita às causas sociais dos menos favorecidos, um comportamento solidário de provável cunho revolucionário, comunista, que ele considerava, não apenas terrivelmente democrático, como impróprio, incompatível com o cargo de educadora de crianças e de adolescentes. O prefeito suspeitava, então, de perseguição política dos cristãos da extrema-direita, já que a moça, declaradamente ateia, andava colocando as asinhas de fora ao botar minhoca na cabeça dos estudantes.

Na minha época — odeio utilizar este preâmbulo —, os alunos presenteavam os professores, não com as maçãs vermelhas dos filmes enlatados norte-americanos, mas, com as frutas tropicais de época, os perfumes baratos em promoção imperdível, as bijuterias artesanais confeccionadas com miçangas em domicílio e outros mimos de valor venal irrisório, mas, de rico significado afetivo. Hoje, numa escala infernal crescente, inúmeros professores sofrem ameaças de alunos relapsos e de seus responsáveis irresponsáveis. Isso sem considerar que alguns estão apanhando em plena sala de aula, numa selvageria sem precedentes até mesmo nos filmes do Tarantino.   

Ando abismado, perdido. Por favor, não me sigam. Penso que deve haver um excesso de deus vingativo no coração dessa gente energúmena, para explicar tamanho fanatismo, além do tacanho fundamentalismo religioso e da apologia à ignorância enquanto falta de cultura. Nunca antes na história do metaverso, ou melhor, nunca antes na história do universo, o culto à mentira e o prazer pela desinformação estiveram em tão alta estima por parcela considerável da sociedade. Trata-se de um fenômeno cosmopolita certamente estimulado pela alta conectividade que nos afasta e nos brutaliza. Tá difícil de entender certas coisas, quem dirá, explicá-las para quem, definitivamente, não está nem um pouco interessado em aprender.

Prometi à professorinha visitar o seu aconchegante cafofo de praia durante a próxima temporada de férias, quando tramaremos versos contra a bruteza dos ímpios. Ela insinuou que vai ter suco de caju, dentre outras iguarias da estação. Tenho a impressão de que serei tratado, senão, antes, como um poeta amigo, como um professor dos velhos tempos de escola. 

*Essa é uma história real baseada numa fake news compartilhada.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.