A Morte é uma caipira que canta sertanejo universitário

A Morte é uma caipira que canta sertanejo universitário

A morte não é tratada em nenhuma outra arte como é tratada no teatro. “O resto é silêncio”, de Hamlet, e o “onde está meu penacho”, de Cyrano de Bergerac, ou mesmo a beleza banal da morte do caixeiro viajante dá testemunho disso. Fui um homem de teatro minha vida inteira e hoje estou diante da Morte. Infelizmente, ela não é uma companheira de xadrez como a personificação da Morte de Ingmar Bergman, outro homem de teatro. Está mais para uma visita desagradável, furtiva e indesejada que aparece a cada vez que vou ao médico ou faço um procedimento doloroso. Preciso do teatro para lhe dar sentido. Não que tenha esperança de encontrá-lo.

Desde que comecei o tratamento contra o câncer, transformei-me no menino da bolha. Passo meus dias trancado, planejando festas que sei que não vou dar. Não posso abrir a porta nem mesmo para meus amigos mais queridos, por perigo de alguma infecção. Só tenho a Morte para me fazer companhia, e ela não sabe jogar xadrez. Quase ninguém sabe jogar xadrez em Goiás. Até nossa Morte é ignorante e brutalizada. Ela não tem nem mesmo a dignidade de se vestir de pretinho básico. Usa botas, calça jeans apertada, camisa xadrez e chapéu de boiadeiro. No lugar da foice, carrega um violão para cantar desafinada música sertaneja universitária.

Quero ter esperança, mas faço coisas de quem não tem mais nenhuma, como enviar meus arquivos pessoais para que amigos do Rio de Janeiro cuidem deles, caso o pior aconteça. Tenho medo de deixá-los em Goiás. Fatalmente, iriam se perder. Os goianos não têm memória, só sabem contar votos e bois nelore, nossos arquivos são depósitos de papeis velhos. Quando muito damos o nome de pessoas que consideramos “importantes” para coisas e lugares sem importância. Tenho pesadelos ao imaginar que podem colocar meu nome em alguma salinha em algum prédio decadente de algum lugar com o rótulo genérico de “espaço cultural”. Não façam isso. Melhor me esquecerem. Na forma de plaquinha na portinha dessa salinha imaginária vou acabar sendo esquecido mesmo. Um dia as letrinhas da plaquinha vão ficar apagadinhas e vai precisar que seja reformada ou substituída. Não vão fazer isso porque seria preciso uma licitação. É muita complicação e burocracia para seguir homenageando um simples homem de teatro na terra dos bois. Melhor deixar como está. A plaquinha vai acabar caindo e a salinha vai voltar a ficar sem nome. Talvez reciclem com o nome da mãe de algum vereador.

Tem muita gente por aí sonhando com a plaquinha, inclusive e principalmente em vida. Muitos coadjuvantes que passam a vida tirando selfies desfocadas, se sentido protagonistas. Quase artistas cheios de glórias municipais com poses de internacionais. Os piores talvez sejam justamente esses que fazem viagens internacionais e continuam sendo jecas-tatus dentro e fora de nossas fronteiras, nunca aprendendo nada. Que tédio dessa gente!

Geralmente, são esses que me pedem para deixar de ser eu, para que eu seja mais politicamente correto e limpinho. Não entenderam ainda que adoro ser politicamente incorreto, que adoro exercer minha liberdade artística e de opinião sem me submeter à vontade dos outros ou suas patrulhas. Se tivessem assistido as minhas peças direito e não ficado o tempo todo disfarçando o celular ligado no escuro ou bocejando, ou pensando na cerveja pós-programa cultural obrigatório para manter a fama de culto e descolado, teriam entendido.

Tenho a tentação de, usando minhas tendências politicamente incorretas, desmascará-los, expô-los em suas mediocridades e hipocrisias. Poderia fazer isso aqui, talvez esse seja meu último texto. Se for, não poderão nem me processar, nem me olhar torto. Não que eu me importe com nada disso, mas prefiro falar de pessoas que gosto e admiro, como Fernando Cupertino, Cláudia Vieira, Ítala Nandi, Gil Perini, Ney Couteiro, Adriana, Newton Murce. São tantos, que nem posso começar a listar, como acabei de fazer, correndo o risco de sempre de cometer injustiças e omissões. Os queridos sabem que são queridos, não precisam de provas.

Diante disso, por que falar dos cineastas goianos que não assistem filmes ou da Legião de gente de teatro de Goiás que acham que enfileirar esquetes é dramaturgia? Por que fazer isso se posso confessar minha admiração por Hugo Zorzetti, depois de tantos anos alimentando uma falsa rivalidade só para não perder a pose? Pois confesso, confesso que vivi, como o Neruda.

Vivi para ver surgir em Goiás alguma esperança de fuga de nossa pequenez cultural, com os romances saborosos do Edival Lourenço, os contos cínicos do Flávio Paranhos e os ensaios non sense e hilariantes que o Ademir Luiz publica na Bula. Creio que esse texto vai ser publicado na Revista Bula. No Rio de Janeiro e em São Paulo ninguém acredita que é uma publicação com DNA goiano, justamente porque foge de nosso provincianismo. Mas a literatura de um estado não se faz apenas com três mosqueteiros, precisa de um D’artagnan para ser o quarto, de um quinto, de um sexto, de um sétimo, de sete vezes sete, do contrário os bons serão sufocados por nosso “teatrinho-do-possível”. Uma arte sem arrepios, que devora a si mesma, fingindo que a cultura está bombando por aqui, esse sertão onde “mediocridade-pouca-é-besteira”.

Se eu me for, quando eu for, não me sigam. Não quero repetir o tédio de agora no céu, no inferno ou no purgatório, seja lá onde eu estiver. Não se preocupem, não vou voltar, não vou visitar nem assombrar ninguém, não vou puxar o pé ninguém na madrugada. Também não vou mandar mensagens psicografadas para nenhum jornal com má impressão publicar. Tampouco quero saber de “populismos” jornalísticos, no qual se desperdiçou durante décadas uma super infraestrutura de comunicação para fazer publicidade baratas de espetáculos de fora, com atores globais, praticamente ignorando o pouco que se produziu com real valor artístico nas terras dos Goyazes. Cada um tem o Anhanguera colonizador que merece, afinal.

Eu tive meu quinhão desse latifúndio. Se reclamo não é por mim, é por quem fica. Sempre fui um apaixonado pela vida. Principalmente depois de meu transplante de medula, senti que Re-nasci. Tenho falado muito nisso pelas frestas das portas, com os amigos que me visitam. Pessoas queridas que gostaria de abraçar e não posso.

Sempre fui um caixeiro viajante, vendendo minhas peças de cidade em cidade. Em algumas delas perdi muitos penachos e não me arrependo de nenhum deles. Sinto saudades da vida que tive, mas se precisar ficar ouvindo a cantoria desafinada dessa Morte sertaneja que me assombra dia e noite, agarrado a um fiapo de vida, não lamentem por mim. Talvez o silêncio seja melhor.

Nota: