Poderoso e quase perfeito, obra-prima na Netflix faz o espectador entrar na alma dos personagens Julien Panié / Synapse Distribution

Poderoso e quase perfeito, obra-prima na Netflix faz o espectador entrar na alma dos personagens

Uma cena sintetiza o terror na França ocupada: policiais franceses, e não alemães, prendem um suspeito de ser judeu. Mas ele não é. Apenas trocou de identidade com seu ex-patrão joalheiro judeu para roubar-lhe os depósitos bancários.

O verdadeiro “culpado” (o excepcional Daniel Auteuil no papel de Mr. Haffmann) tinha rifado seu patrimônio para seu ex-funcionário (o ansioso e assustador Gilles Lellouche). O objetivo era poder migrar para uma região segura, onde é esperado por sua família.

A troca de identidades foi um crime pontual em consequência de um acordo de guerra. O dono da joalheria, para escapar, transfere seus bens para o empregado, que deverá devolver tudo depois do conflito.

O desdobramento é previsível. O empregado que nada tinha agora quer tudo. De vítima ele vira algoz, como sua nação invadida que assume a repressão dos invasores na cena dos polícias efetuando a prisão do “inocente”. No fundo não são arianos contra judeus, mas franceses contra si mesmo. A tirania do terror confunde as identidades e coloca na cadeia quem tenta preservar sua cidadania.

Fugir, neste “O Destino de Haffmann” ( Fred Cavayé, 2022), é negar a identidade e o patrimônio. Não há como escapar, pois, as fronteiras estão fechadas num círculo de fogo, ferro e intolerância.

A porção humana do drama escrito para o teatro e adaptado ao cinema por Fred Cavayé, encarna na densa e concentrada atriz Sara Giraudeau no papel de Blanche, a esposa do funcionário coxo que tem agora a sorte de ser proprietário. Enquanto ele acha tudo normal ela contrapõe o entusiasmo do marido com um véu de dúvidas.

Trabalhadora numa lavanderia vê-se dona de um apartamento de luxo com armário lotado de vestidos caros. Para dar tudo certo ela precisa engravidar. O que acontece, mas não da maneira esperada.

O nazista apaixonado por joias suborna o joalheiro com peças roubadas dos judeus. O tempo todo as identidades nacionais e individuais se cruzam desafiando a ética e sobrevivência. As classes sociais se confrontam em ambientes fechados e escuros. A pobreza entra num jogo de troca com a riqueza. O defeito físico pontua a tentação imoral. Os rostos duros e sofridos refletem o tempo mau, que pode voltar enquanto a humanidade persistir nos seus equívocos.


Filme: O Destino de Haffmann
Direção: Fred Cavayé
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 9/10

Nei Duclós

Escritor e jornalista.