Um dos mais belos filmes da história recente do cinema chegou à Netflix e você não assistiu Sabrina Lantos / Serendipity Point Films

Um dos mais belos filmes da história recente do cinema chegou à Netflix e você não assistiu

Dois irmãos (um é adotado), unidos e separados pela Segunda Guerra, participam da tragédia coletiva trilhando os caminhos da memória. O menino judeu da Polônia e gênio do violino, vai morar com a família do garoto londrino para estudar música. O estranhamento inicial cede à amizade e cada um toma seu rumo na separação de 35 anos.

Não comparecer ao concerto de sua vida aos 15 anos e desaparecer por força da busca de suas origens desencadeia a investigação sobre seu paradeiro pelo homem que ficou vendo o pai morrer de desgosto e atolado em dívidas provocadas pela ausência do virtuose na noite fatal. O britânico quer explicação e vingança. O polonês confirma a morte de toda família em Treblinca e descobre a forma de lembrar e homenagear os parentes por meio de uma melodia onde estão inseridos os nomes das vítimas.

Cada um com suas razões que desaguam num acordo para ficarem quites: a execução do mesmo programa do concerto abortado. É o canto de cisne dessa relação que guarda um segredo ainda maior: a traição do irmão judeu à boa fé de quem não se conformava com sua ausência.

O Bem de quem de nada sabia se cruza com o Mal do estrangeiro que saqueava os mortos e era tão arrogante que acreditava não depender de professor. O Bem do judeu que recebe o impacto da terrível notícia familiar numa cena que faz chorar as pedras e precisa pagar a dívida cobrada pela vingança de quem ficou. Obra complexa que foge ao lugar comum dos filmes da Segunda Guerra.

Não aparecem os uniformes nazistas e sim os bombardeios em Londres. Nem a fuça de Hitler, mas o ambiente sinistro do campo de concentração de Treblinka.

Os atores jovens estão excelentes e entre os adultos, enquanto Clive Owen se esconde numa barba postiça e interpretação contida do judeu sofrido, Tim Roth mostra mais uma vez que faz parte do raro grupo de atores excepcionais contemporâneos.

Dois atores competentes expressam o resgate e a sobrevivência das suas identidades. Sentem orgulho em relação à comunidade a que pertencem e essa diferença parece pautar para sempre o estranhamento. Mas o convívio forçado abre espaço para a sintonia e o entendimento. A Guerra, entretanto, os devolve ao nicho original da respectiva espécie. O londrino se sensibiliza com as vítimas do bombardeamento e sente orgulho do exército britânico. O irmão de Varsóvia parece ser indiferente à matança enquanto ela reflete uma situação coletiva. Mas quando mergulha na própria individualidade ao saber que sua família foi massacrada se desmancha diante do conflito.

Duas amargas lições para criaturas que despontavam para a vida adulta e foram feridas em seus destinos. O cinema, entretanto, costura as vivências espelhando o terror em vidas estilhaçadas que procuram curar as feridas e conviver em paz com as cicatrizes.

Filme emocionante que ultrapassa as fronteiras de nações ou povos em guerra e que habita nosso espírito numa época atual que parece reproduzir as ameaças do grande conflito.


Filme: O Cântico dos Nomes
Direção: François Girard
Ano: 2019
Gênero: Drama
Nota: 9/10

Nei Duclós

Escritor e jornalista.