Suspense respingado de sangue que acaba de chegar à Netflix é um dos filmes mais brutais de 2023 Divulgação / Netflix

Suspense respingado de sangue que acaba de chegar à Netflix é um dos filmes mais brutais de 2023

Os personagens de “Refém da Verdade” mais parecem saídos de um reality show — com tudo de genuinamente real e muito do farsesco que ronda a vida do homem comum, esteja ele conformado ou não com a ideia de que viver é, cada vez mais, apenas o que pessoas que nunca haveremos de conhecer, que jamais terão de se preocupar com nossas três refeições diárias e que tampouco serão forçadas a ouvir nossas lamúrias numa noite de inverno sem agasalho resolvem o que devemos pensar sobre os assuntos do momento, como precisamos reagir frente aos desconfortos embaraçosos da existência nas sociedades contemporâneas e, o principal, emitir a opinião politicamente correta e aceitável para a coletividade a respeito dos temas espinhosos sobre os quais ninguém, por óbvio, ninguém se debruça. If Chen arranca a vida como ela é de seu pedestal, soberana do destino de todos nós cá embaixo, e faz com que se misture às expectativas mais triviais dos ingênuos que ousam viver sob seus próprios auspícios, em ondas de episódios que escandalizam pela crueza.

Jornalistas escrupulosos são uma espécie cada vez mais rara, como deixa clara a performance de Joseph Chang. Como o repórter encarniçado em notícias que não interessam, mas que rendem milhões de acessos, Liu Li-min dá uma ligeira torcida no que consegue apurar para que “Dissecando”, o programa comandado por ele, símbolo maior da imprensa marrom de Taiwan, não saia do ar. A esse caçador de cliques, visivelmente inebriado pela adrenalina de um ofício um tanto duvidoso, mas sem dúvida instigante, é vedado até um raro momento de fruição com a mulher e a filha durante a partida de beisebol que abre a história no belo plano geral em plongée do texto de Huang Yen-chiao e Yeh Nai-ching. Os roteiristas agarram esse gancho no intuito de carregar nas tintas da paranoia (não de todo injustificada) de certos profissionais de imprensa, que nunca conseguem deixar de sentir na nuca o bafo quente da concorrência, e por extensão, do desemprego. E aquele 11 de novembro de 2012 poderia um manancial substancioso de visualizações — mas não foi.

Sete anos depois, Liu está para ser despedido, deitado no sofá para muito além do horário conveniente, lutando contra a prostração em que fora atirado desde a morte da esposa, também jornalista. Chang despeja um caminhão de carisma sobre seu anti-herói, que merece ainda mais atenção com a entrada em cena de Caitlin Fang como Chen-chen, a filha adolescente que não se importa de inverter os papéis e ser uma mãe para esse homem alquebrado pelo tempo e torturado pelas lembranças, mas que, acatando a sábia tradição oriental, imita o bambu, que o vento dobra, mas o sabre não pode cortar. Naturalmente que a negligência culposa de Liu termina por acarretar situações perigosas para a garota, que sabe muito bem de que expedientes o pai se vale para botar comida na mesa, mas por ter nascido quando a revolução digital era já uma realidade consolidada e inescapável, talvez não dê tanta importância à subversão dos velhos costumes e à transposição de pudor em esperteza, da ética em instinto de sobrevivência.

Na virada do segundo para o terceiro ato, Chen investe no caráter destacadamente noir da trama, expondo a relação do jornalista com Chang Cheng-yi, de Edward Chen, o ex-jogador de beisebol que Liu vira em campo em 2012 e que acaba de deixar a cadeia depois de punir pena por ter matado a namorada. O vínculo desses dois homens com tantos pontos de contato entre si empurra “Refém da Verdade” para um desfecho violento, mas duramente fidedigno, de uma história plena de lições.


Filme: Refém da Verdade
Direção: If Chen
Ano: 2022
Gênero: Policial/Suspense
Nota: 8/10