Melhor estreia em 2023, filme da Netflix é uma pequena obra de arte que vai dilacerar sua alma Divulgação / Netflix

Melhor estreia em 2023, filme da Netflix é uma pequena obra de arte que vai dilacerar sua alma

Na Colômbia, há décadas pequenos produtores rurais têm sido expulsos de suas terras por latifundiários ricos. Mas um programa do governo pretende fazer a restituição fundiária de milhares de famílias. Mesmo assim, a disputa por terras é um tema muito delicado no país. Apesar de inúmeros pedidos por devoluções, famílias que conseguiram reaver seus terrenos vivem à sombra do medo, ameaçadas e intimidadas. Vilarejos remotos aguardam abandonados, com casas em ruínas e matos altos, porque pistoleiros impedem os verdadeiros donos de habitá-los.

E é neste contexto de violência e guerra, que Laura Moga Ortega nos conta a história de cinco meninos adolescentes marginalizados em Medellín. Sem família, Rá, Culebro, Sere, Winny e Nano foram unidos pela força das circunstâncias da vida e das injustiças nas ruas. Renegados e largados à própria sorte, eles, ao menos, podem apoiar-se um no outro e sonhar juntos. Quando Rá recebe uma carta do governo dizendo que a terra tomada de sua avó será restituída e que ele, como único herdeiro, será nomeado proprietário do terreno, Rá e seus amigos, em êxtase, decidem partir em uma jornada para chegar à “terra prometida”.

Mas a viagem se revela uma verdadeira odisseia, onde o grupo precisa atravessar um território desconhecido e inóspito, contar com um pouco de sorte e com ajuda de desconhecidos. Nada se desenrola tão fácil quanto parecia ser, à princípio, mas os jovens, mesmo esgotados fisicamente, estão determinados a reaver sua terra e reconstruir sua vida com o mínimo de humanidade, trabalhando como produtores e dominando seu pequeno reino. Durante toda a viagem, nos angustiamos, torcemos e nos emocionamos com esses meninos, cujo simples sonho de alcançar a dignidade e o trabalho honesto parece exigir deles um esforço hercúleo.

Conforme adentra paisagens andinas, o filme mergulha em um país complexo, onde muitas são as promessas de um futuro melhor, mas no qual a realidade presente pouco espelha esse vislumbre. Embora não haja cenas explícitas de violência, ela mora nos traumas que assombra os olhares de cada personagem, marcados por suas tragédias particulares. Enquanto saem missionários por liderar seu destino, os meninos que precisam agir como homens não passam de apenas crianças sonhadoras, brincando de serem livres.

E é altamente impressionante o espírito de bravura, honra e dignidade que tomam esses garotos, cujas estradas de suas vidas são tomadas de precariedade e desolação. A esperança é sempre um horizonte no qual eles não nunca abandonam, mas o caminho está cheio de maldade e é preciso mais que coragem para desvencilhá-la.

Com atuações espetaculares e que irradiam honestidade por atores não profissionais, encontrados em bairros carentes, o filme penetra nossa alma como uma adaga afiada, mas com a sutileza de uma poesia contada por meio de imagens das paisagens de planícies e de cadeias de montanhas. A fotografia contemplativa dá a sensação de sonho. “Os Reis do Mundo” é um filme comovente e que nos faz flutuar em um mundo entre a realidade e a imaginação, entre o conto de fadas e a tragédia.

O filme chegou a tentar uma vaga no Oscar, o que teria sido mais que merecido. Por ter sido esnobado na maior premiação do cinema global e por seu grau de extrema sensibilidade, intelectualismo e arte, “Os Reis do Mundo” corre o risco de ser condenado ao esquecimento. Cabe a nós, entusiastas do cinema cult, jamais deixá-lo ser enterrado.


Filme: Os Reis do Mundo
Direção: Laura Mora Ortega
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 10/10