Para assistir duas vezes: obra-prima do cinema árabe acaba de estrear na Netflix

Para assistir duas vezes: obra-prima do cinema árabe acaba de estrear na Netflix

Ninguém consegue atravessar a vida imune a críticas, e é precisamente a forma como reagimos aos percalços do dia a dia, alguns muito mais espinhosos que outros, que definem boa parte de quem somos e, mais importante, do que podemos vir a ser. Todos nos vemos em palpos de aranha de vez em quando — às vezes num intervalo  desesperadoramente curto entre um enrosco e outro — e em que pese viver numa sociedade cujas pequenas e grandes violências pautam a vida e os desejos dos homens, num mundo cada vez mais individualista em que valores antes fundamentais a fim de se primar pela boa convivência restam completamente distorcidos e superados, somos forçados a encarar problemas com os quais não esperávamos nos deparar jamais. Desembarcar do plano dos sonhos, respirar fundo, abrir bem os olhos e apossar-se da realidade parece uma disputa inexpugnável contra si mesmo, como os inverossímeis personagens de “Cartas na Manga” fazem questão de deixar muito claro.

Sensação no Festival Internacional de Cinema do Mar Vermelho, premiação que vem se consolidando como o grande celeiro de produções da novíssima indústria cinematográfica do Oriente Médio e Norte da África, o filme do saudita Fahad Alammari abraça as incongruências da condição humana incluindo, como não poderia ser de outro modo, o ponto de vista da religião — constante nos diálogos escritos por Alammari e seu trio de colaboradores —, e a consequente discussão a respeito da dificuldade do gênero humano em entender por que Deus, que tudo sabe, que vê todas as coisas que se passam desde o princípio dos tempos, inclusive as que ainda nem saíram do coração do homem, prepara-nos falsetas das quais temos a certeza de que não sairemos, ainda que saiba que somos dominados por nossas fraquezas, por nossa iniquidade, pelo impulso arrebatador de querer levar vantagem em todas e quaisquer circunstâncias e revoltar-se quando o destino nos passa uma rasteira, assim mantendo sob controle nossa sanha bestial.

Originalmente lançado como uma série com 22 episódios que alcançou mais de 1,5 bilhão de visualizações, o enredo de “Cartas na Manga” presta-se a irreverente análise dos hábitos do homem comum em Riad, capital da Arábia Saudita, à volta (e mesmo acossado) por uma cultura que o oprime, por mais que o diretor, claro, desfaça possíveis mal-entendidos e esclareça que seus malandros caminham pelo lado escuro da vida. Fahad Albutairi e Ismail Al Hassan dividem o posto de estrela numa trama que se equilibra entre sequências mais aceleradas, na cadência de uma trilha que acompanha cartesianamente o ritmo da história. Acontecimentos inesperados agudizam essa inadequação dos dois junto à cultura em que foram criados, com a qual demonstram ter uma relação dialética, de amor e ódio, explicitada já na abertura com o criativo argumento que estabelece a improvável conexão entre um freezer e um celular; nesse diapasão vibram também os tipos encarnados por Ziyad Alamri e Sohayb Godus.

Parceria entre a Netflix e os estúdios Telfaz11, o trabalho de Alammari sedimenta o interesse do resto do mundo por manifestações artísticas em evidência muito menos perceptível pelas demais partes do globo, mas cheias de suas mensagens tão sutis quanto arrebatadoras, processo iniciado em 2016 por “Barakah com Barakah”, de Mahmoud Sabbagh.


Filme: Cartas na Manga
Direção: Fahad Alammari
Ano: 2023
Gênero: Comédia/Drama/Mistério
Nota: 8/10