Um dos mais belos filmes da história do cinema nacional está na Netflix e você não assistiu Divulgação / Globo

Um dos mais belos filmes da história do cinema nacional está na Netflix e você não assistiu

Alguns filmes têm o condão de registrar as passagens lendárias da trajetória de um indivíduo, aquelas que compartilha com o mundo que o cerca, feita de momentos bons e, por óbvio, também dos tantos lances que mancham sua reputação, entristecem-no, o contaminam com a pior das vergonhas, trazem-lhe à lembrança a incômoda evidência de que não passa de um homem, sujeito às intempéries da vida, ao sal das lágrimas que embota o sorriso, à mudez temporária que impede o canto, à morte que o silencia para o mundo. Outrossim, há também filmes que embrenham-se sem pressa pela natureza mais íntima desse homem, aproximando a glória efêmera que consegue ao longo de uma carreira de sucesso, consolidada tijolo por tijolo, à certeza de que seu legado não fica encerrado nele, mas sobrevive para além da vida, correndo no sangue que lhe pulsa nas veias, como se se amalgamasse mesmo à identidade profunda de seu povo sofrido, pelejando pelas estradas perigosas em busca do sonho que não se cansa de sonhar. Assim é “Gonzaga — De Pai pra Filho”.

Ao decidir desmistificar muitas das fantasias na história de dois dos maiores artistas de seu tempo, cada qual no seu compasso e no seu estilo, mas partilhando o mesmo talento, boa parte de uma mesma sorte e, ainda que não fossem unidos pela biologia, a mesma carne, Breno Silveira (1964-2022) entrega um dos trabalhos mais intensos de uma carreira irregular, mas prolífica, definida por filmes bissextos, porém memoráveis. Sete anos antes, Silveira começara a tomar gosto pela vida oculta dos grandes artistas populares do sertão sem fim chamado Brasil e que, a muito custo, perseverança e gema de ovo crua, conseguem se projetar para além do interior. Em “2 Filhos de Francisco” (2005), o diretor exercitou muito da verve dramática comprovada no filme de 2012, aproveitando o farto arquivo de fotos, áudios e vídeos que o roteiro de George Moura e Patrícia Andrade inclui no transcurso de mais de duas horas de um enredo que vem e vai no tempo nas analepses narradas por um pai ferido ao responder a provocação de um filho rancoroso.

O encontro marcado Luiz Gonzaga do Nascimento (1912-1989), o Gonzaga, o Gonzagão, com Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior (1945-1991), o Gonzaguinha, parece o sonho entre tétrico, pleno de imagens torturantes de um passado que teima em não passar, e poético, quando os dois personagens, felizmente, afinam os instrumentos e entoam uma só canção. Essa melodia começa na ida de Gonzaguinha a Exu, divisa de Pernambuco e Ceará, em 1981. O Rei do Baião já fora tragado pela bruma corrosiva do tempo e não despertava mais o interesse do Sul Maravilha, encantado pelas músicas de protesto de que Gonzaguinha era um dos príncipes. Ironicamente, Helena, a segunda mulher de Luiz Gonzaga, vivida na maturidade por Magdale Alves, tivera de passar por cima do orgulho e esquecer do desprezo que sempre nutrira por Luizinho e o chamara a socorrer o pai.

A narrativa toma substância dramática a partir desse instante, quando Júlio Andrade e Adélio Lima emulam a rivalidade cheia e afeto de Gonzaga e Gonzaguinha e travam uma guerra santa pelo interesse da plateia. Silveira destrincha passagens curiosas e perturbadoras da vida do sanfoneiro, como o alistamento nas tropas do Exército, em 1929, aos dezessete anos, sua primeira fuga da miséria, quando conheceu uma Fortaleza já buliçosa, a cidade grande possível naquelas lonjuras do Norte. Um ano depois, contrariando a promessa que fizera ao pai, eternizado em “Respeita Januário” (1950), pegara em armas para depor o presidente Washington Luís (1869-1957), na malfadada Revolução de 1930, de que resultou a ascensão de Getúlio Vargas (1883-1954), o primeiro dos muitos déspotas que o Brasil teria de suportar no decorrer do infausto século 20 que ainda engatinhava. Como a vida é mesmo trapaceira, Gonzaguinha foi um dos mais engajados brasileiros na luta para a derrubada do regime ditatorial que vigeu por mais de duas décadas, entre 1964 e 1985, aspecto de sua curta vida abordado no último ato. E só com o gogó.

Uma das produções mais bem cuidadas do cinema brasileiro, “Gonzaga — De Pai pra Filho”, mais que dupla cinebiografia, é um documento histórico-artístico vívido de um Brasil atrasado, reacionário, racista e paupérrimo, mas que encontra brechas no atoleiro e vence. Gonzaga e Gonzaguinha não morreram; hão de viver eternamente no romantismo brejeiro e politizado de quem escuta seus discos.


Filme: Gonzaga — De Pai pra Filho
Direção: Breno Silveira
Ano: 2012
Gênero: Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.