Alucinante e delirante, filme na Netflix é pura diversão e vale a pena assistir se você quiser gargalhar Divulgação / Sony Pictures

Alucinante e delirante, filme na Netflix é pura diversão e vale a pena assistir se você quiser gargalhar

Ninguém passa incólume à mera suposição de que, algum dia, a humanidade acabará colhendo todos os amargos frutos que hão de nascer da semente de negligência, pouco caso, predação indiscriminada e ganância sem freio e sem propósito que lançou pela Terra, globo feito em grande parte da água cada vez mais preciosa com que irrigamos as lavouras que alimentam gente e bichos, progressos e atrasos. Conforme avança o implacável tempo, consegue-se, aos poucos, ter alguma dimensão quanto ao impacto de nossas escolhas, se nossa jornada se dá pelo lado certo da história, se fazemos nossa parte quanto a conservar intacta a beleza que encontramos pelo caminho, se nossas fraquezas levam-nos a uma omissão perigosa, que implica risco para nós mesmos e para aqueles que nos rodeiam, se devemos interromper velhos hábitos, enquanto ainda nos sorri a esperança, e começar de novo, na medida do que se nos apresentar possível, por mais que tal empreitada vá ter mesmo suas muitas pedras, seus tantos obstáculos e essa viagem assemelhe-se mais a uma despedida. 

Se viver já parece com uma aventura, sem que precisemos fazer qualquer esforço quanto a nos deparar com as inúmeras feras a espreitar-nos por detrás das moitas, em muitas circunstâncias, a natureza genuinamente danosa da vida se nos revela por mecanismos que rescendem a ficção, até meio farsescos, que tornam-se mais fortes precisamente nos momentos em que somos confrontados com nossas certezas, todas falsas, como não tardamos a saber. Se não há mesmo providência alguma a se tomar a fim de manter distante o fim dos tempos; se o mais que nos dedicamos a nossa salvação — projeto ousado, pouco rentável, nada prazeroso — presta-se apenas a empurrar-nos para o fundo do precipício das boas intenções; se é só uma quimera nosso ímpeto de nadar a plenos pulmões e fugir a uma correnteza que traga embarcações gigantescas, a melhor atitude  a se encantar é praticar o mandamento fundamental da verdadeira comédia e rir, para que os costumes se corrijam. Ruben Fleischer atenta para o conselho dos comediógrafos da Antiguidade e “Zumbilândia: Atire Duas Vezes” é um mosaico de cores, sons e muito, muito movimento numa sucessão de subtramas deliciosamente insanas, em que o nonsense passa por banal.

O reproche mais contundente ao filme de Fleischer refere-se ao hiato de uma longa década entre o filme inaugural e este — de fato uma eternidade no mundo cada vez mais efêmero da indústria cultural em todo o planeta —, o que abre o leque para discussões ainda mais profundas, malgrado um tanto bizantinas, acerca da desnecessidade das franquias. Afortunadamente, o diretor e seus roteiristas, Rhett Reese, Dave Callaham e Paul Wernick, ignoraram essas maldições, repetiram a dose e aproveitaram para, literalmente, dobrar a aposta. Em “Zumbilândia: Atire Duas Vezes”, o escracho começa já na vinheta de apresentação do estúdio, com a efígie da Columbia, a distribuidora da Sony, tendo de se desvencilhar dos zumbis, que aqui aparecem em ocasiões muito menos numerosas — essas piadas metalinguísticas pipocam aqui e acolá no transcurso da pouco mais de hora e meia de projeção, culminando com a participação impagável de Bill Murray num papel autorreferencial, respondendo a provocação de Columbus, um dos quatro cavaleiros deste apocalipse.

O estudante da Universidade do Texas, vivido por um Jesse Eisenberg surpreendentemente mordaz, continua um romântico incorrigível, predicado que Eisenberg e sua adorável estampa deixam bastante claro. Bem, nem tanto: no primeiro ato, uma decisão intempestiva de Wichita, a antimocinha de Emma Stone, o leva a se encantar por Madison. Antípoda da personagem de Stone, a patricinha tola e fútil, mas cheia de truques de Zoey Deutch, responde por muito da razão de ser do filme, justificando, inclusive o título. Nessa levada, entram mais alguns tipos tão excêntricos quanto refrescantes, como Berkeley, de Avan Jogia, o novo namoradinho de Little Rock, interpretada pela sempre encantadora Abigail Breslin. O romancezinho água com açúcar dos dois, sem nenhum tom sobressalente, é o que conduz o quarteto a um dos grandes momentos do longa; antes que ele aconteça, vale reparar na performance de Woody Harrelson como o incansável Tallahassee, o paizão opressivo (e até meio incestuoso) da turma.


Filme: Zumbilândia: Atire Duas Vezes
Direção: Ruben Fleischer
Ano: 2019
Gêneros: Terror/Comédia/Ação
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.