A filosofia está em tudo, bem como o próprio Deus, de onde emana todo o amor e toda a sabedoria — isto é, a filosofia ela mesma —, é, igualmente uma substância hegemônica e imanente, que domina tudo quanto há na face da Terra, empenhando-se desde o seu surgimento, no século 6 a.C., em dar ao homem alguma explicação para as muitas inquietações de sua alma miserável, elevando-se sobre toda a ciência, toda a poesia, toda a beleza em conferir algum sentido a sua existência bestial — e malogrando fragorosamente. O filósofo holandês Baruch de Spinoza (1632-1977) defendia que a natureza de divindade de um ente capaz de reger todos os outros residia exatamente no seu caráter de poder se imiscuir a tudo, afinal, todos os seres e mesmo todas as coisas têm seu lado luminoso, celestial, e sua porção sombria, que nunca é dada ao acaso, existe mesmo que obedecendo a uma determinação do próprio Altíssimo.
O cinema é das manifestações artísticas que o gênio do homem ousou criar mais afetas à filosofia. Reunimos dez títulos em que, de uma forma mais sutil, como no drama “A Sun” (2019), do taiwanês CJ Wang, ou com violência, caso de “A Ausência que Seremos” (2020), do espanhol Fernando Trueba, o conhecimento une-se ao amor, na vã esperança de que o homem não sofra, o que só pode acontecer quando renunciar ao conforto de seus erros. Os filmes, todos no acervo da Netflix, estão elencados do mais recente ao lançado há mais tempo.

Paolo Sorrentino parece querer pavimentar uma trajetória que pelo menos chegue perto do sucesso que Federico Fellini (1920-1993) alcançou em sua vida profissional com obras-primas do quilate de “Amarcord” (1973). Em “A Mão de Deus”, o diretor — cujo refinamento estético inegavelmente tornou-se marca registrada de seus trabalhos, vide “A Grande Beleza” (2013) —, fellinianamente, transpõe para a tela eventos que pontuaram sua intimidade. Os tipos que habitam seu filme são desabridamente caricatos, um aspecto explorado à larga pelo veterano, que jamais permitiu que nenhum deles resvalasse na vulgares — apesar de chegarem bem perto muitas vezes. Fellini, contudo, sempre dava um jeito para que o charme e o encanto de cada uma daquelas almas sobrepujassem sua natureza irregular, grotesca, bestial até. E Sorrentino segue o mestre.

O roteiro de “Um Lugar Silencioso”, escrito pelo próprio diretor, John Krasinski, em parceria com Bryan Woods e Scott Beck, se baseia numa família, em que Krasinski dá vida a Lee Abbott, o pai, uma figura inicialmente marginal na trama, mas que ganha espaço à medida que a história toma corpo. Junto com a mulher, Evelyn, interpretada por Emily Blunt, e os três filhos, Marcus, personagem de Noah Jupe, Regan, vivida por Millicent Simmonds, e o mais novo, de Cade Woodward, Lee tenta sobreviver no que restou do mundo depois da invasão de criaturas extremamente violentas que deram cabo de boa parte da população da Terra, tendo de também adotar um hábito essencial para tanto: fazer o máximo de silêncio de que forem capazes, uma vez que esses predadores impiedosos são dotados de uma audição muito superior à humana, o que lhes permite chegar ao local exato em que se escondem suas presas ao menor ruído que façam. Servindo de prequel e de extensão do filme que apresenta os Abbott e sua agonia escatológica, “Um Lugar Silencioso: Parte II” faz questão de frisar o argumento da invasão do planeta por monstros intergalácticos adicionando pouca novidade à história central, mas apostando alto nos efeitos especiais da equipe comandada por Charles Cooley e na edição de Michael P. Shawver, além de bisar a parceria entre Krasinksi e seus dois corroteiristas.

Grandes cineastas compuseram trabalhos que se debruçaram sobre as lembranças mais doces — e nem tanto — de personagens ainda por completar o processo de amadurecimento, dos mestres Ingmar Bergman (1918-2007), diretor de “Fanny e Alexander” (1982), a Federico Fellini (1920-1993), com “Amarcord” (1973), passando pelos contemporâneos Luca Guadagnino, de “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), e Paolo Sorrentino, responsável por A Mão de Deus (2021). Com “A Ausência que Seremos” (2020), o espanhol Fernando Trueba junta-se a esse rol com um filme envolvente, perturbadoramente emocionante e, sobretudo, honesto. Trueba faz muito mais que adaptar e organizar as reminiscências de alguém que sente a falta de quem amou e não se conforma com essa perda, estúpida, precoce, criminosa, o que já não seria pouco.

A participação do país na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) fica menos obscura graças ao filme do diretor holandês Matthijs van Heijningen Jr. Lançado em 2020, uma das produções cuja estreia se deu na esteira da pandemia de covid-19, “A Batalha Esquecida”, como “Dunkirk” (2017), de Christopher Nolan, também se debruça sobre um episódio pouco documentado e ainda menos esclarecido acerca da sequência de enfrentamentos armados que deixaram marcas profundas na história recente do homem, dado o tempo por que se estenderam. Ao longo de sete anos, Eixo e Aliados se bateram numa guerra que parecia fadada à eternidade, mas para a qual, felizmente, vislumbrou-se uma chance palpável de definição positiva a partir de 6 de junho de 1944, com a invasão da Normandia, no norte da França. A Operação Overlord, ou Operação Netuno, mais conhecida como o Dia D, foi o maior ataque por mar a um país inimigo da história.

“A Sun” começa de maneira brusca e, assim, o espectador já fica esperto quanto ao que pode esperar do drama taiwanês do diretor Chung Mong-hong. Mas que ninguém se desestimule: o enredo é todo permeado por respiros cômicos — e eles são mesmo necessários. A pobreza, ainda que num país rico, é implacável, e ai daquele que pense que pode subverter o estabelecido. Contudo, seria tolo afirmar que o risco social é o responsável por fomentar a criminalidade; o fato é que a alma de todo homem tem sua face sombria — e cada um deve mantê-la sob controle. E controle — e, por extensão, autocontrole —, é uma ideia cara aos orientais. Um pai de família honrado não se prestaria a aturar os deslizes de caráter por parte de um filho, muito menos seus delitos. Ao tomar conhecimento da prisão de A-Ho, A-Wen exige que o caçula seja sentenciado com uma pena severa, o que revolta sua mulher, Qin, mãe do rapaz. A partir daí, o que se segue é a total desintegração do que até tão pouco tempo era um lar (e uma família).

Seres humanos nos perdemos e conseguimos nos reapossar de nossa razão e da dignidade ofendida mil vezes para outras mil vezes voltarmos a nos embrenhar na mata cerrada da insânia, devorando-nos e nos prestando à condição de feras sanguinárias de inúmeros outros homens, na carnificina diabólica e sem fim da existência neste plano de horrenda mesquinhez. Aprendemos pouco com os erros milenares de nossos infelizes ancestrais, quiçá à espera do arrebatamento dos anjos ou do socorro dos bárbaros, trazendo alguma falsa solução com que teremos o maior prazer de nos iludir. Essa poética miragem em que o existir revela-se-nos como uma fantasia ideal, livre de todos os obstáculos que atravancam-nos a felicidade possível, não obstante as quadras da História em que a humanidade é tomada do pesar extremo pelo que lhe responde o destino ao seu desprezo pela civilização, é o mote de “O Cântico dos Nomes”, em que o franco-canadense François Girard abre uma imensa janela para paisagens cada vez mais negligenciadas do que deveria ser a definição por excelência de uma pessoa.

Sozinhos, sem quaisquer vínculos familiares e com alguns problemas sociais, os vizinhos Andy e Mike foram feitos um para o outro. Eles não sabem ao certo o que é a felicidade, mas felicidade para eles é comer pizza congelada todos os dias, assistir a filmes antigos de kung-fu, tentar decifrar enigmas bestas e, claro, praticar paddleton, um jogo inventado pelos dois. A vida nada empolgante desses amigos segue um curso monótono, mas perene na comédia dramática de Alexandre Lehmann, até que Mike é diagnosticado com câncer no estômago e sente que não vai viver muito mais. A fim de preservar sua qualidade de vida e o pouco que lhe resta de sanidade mental, Mike toma uma decisão: prefere morrer o mais breve possível, enquanto ainda tem saúde, por meio do suicídio assistido, legalizado em alguns estados americanos.

Sonhos podem se tornar obsessões, que por seu turno podem virar um grande problema. O casal Rachel e Richard enfrenta um momento delicado, precisamente por não saber que existem limites que devem ser respeitados mesmo quando se trata de alcançar o propósito mais nobre de suas vidas. Interpretados por Kathryn Hahn e Paul Giamatti, os protagonistas de “Mais Uma Chance” só pensam em como será poder ter, afinal, a sensação de serem pais, algo por que vêm batalhando há muito tempo. E tempo é um dos fatores que joga contra eles. Na dramédia dirigida por Tamara Jenkins em 2018, Rachel e Richard já passaram dos quarenta — ela tem 41 anos; ele, 47 —, mas seguem firmes quanto a realizar a aspiração maior que os une, ter um filho. O tempo de que não dispõem mais é, sim, um grande adversário, mas na verdade há outras evidências atirando-lhes na cara o quão exaustiva pode ser essa jornada. Rachel já não é mais fértil e Richard tem um único testículo e ele está bloqueado, ou seja, é capaz de produzir esperma, mas não espermatozoides. Em outras palavras, o sonho está se rendendo à força de uma realidade cruel.

Em “Werk Ohne Autor”, Florian Henckel von Donnersmarck alude a essa passagem da História, deslocando os acontecimentos de Munique para Dresden. Na introdução, o garoto Kurt, vivido inicialmente por Cai Cohrs, visita a exposição em que o guia de Lars Eidinger debocha de ninguém menos que Picasso, Mondrian, Kandinsky, Paul Klee, George Grosz. Sua tia Elisabeth, a personagem de Saskia Rosendahl, é quem lhe deixa claro, ainda que não precise dizer uma palavra, o quão equivocado é tudo aquilo, uma mistura de despeito e valorização macromaníaca bem ao estilo do Führer, espetáculo bizarro que deixava no ar o que se poderia esperar do regime que se ia fazendo conhecer.

Buscando retratar a jornada de um homem por redenção, ávido por se refazer, depois de ter metade da vida desperdiçada na cadeia, pagando por um crime que não cometeu, “Outside In”, imprime um estilo próprio quanto a contar uma história nada especial. Delicadeza é a palavra exata para definir o drama da diretora Lynn Shelton (1965-2020) sobre Chris, vivido com toda a dignidade por um Jay Duplass no esplendor de sua forma. Aos 38 anos, agora fora do cárcere, o protagonista do filme, que ganhou as telas americanas em 30 de março de 2018, regressa à sua Granite Falls natal depois de duas décadas preso. A sequência inicial, em que Chris é visto comendo batatas fritas enquanto aprecia a paisagem que se lhe desenha fora do carro no caminho de volta — decerto a vislumbrar que espécie de futuro poderia ter doravante, mas ainda assim denotando uma expressão de alento —, já deixa o público avisado quanto ao que pode esperar de “Outside In” (“perspectiva”, numa tradução livre).