Como o conceito de literatura contemporânea estipulado pela crítica especializada é fluido e flexível, informo ao Leitor que a cronologia deste artigo se baseará na produção ficcional brasileira, publicada a partir da década de 1950 do século passado. Destarte, as obras selecionadas representarão os últimos anos da segunda metade do século 20, no que tange ao exercício de escritura nacional em prosa de ficção. Aviso aos navegantes que, na próxima ocasião, incumbir-me-ei da análise resumida dos romances dos primórdios do século 21, assinados por autores notáveis no cenário da pós-modernidade. Neste contexto, torna-se imprescindível explicitar que os romances desta crônica serão alinhados por ordem cronológica de publicação; e, por isto, iniciarei a apresentação pela epopeia gauchesca “O Tempo e o Vento”, de Erico Verissimo, sendo o principal modernista da Região Sul do país, pertencente ao seleto grupo de escritores, majoritariamente nordestinos, representantes da neorrealista Geração de 30.
A saga da família Terra Cambará será retratada em seis volumes, a partir da fundação do estado do Rio Grande do Sul. A obra-prima assinada por Veríssimo, o pai, pode ser considerada como o livro mais importante pós-década de 1950, até a publicação de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, em 1956. O romance de fundação de autoria do dr. João Rosa instaura a perspectiva de interpretação estética, ao revisitar inúmeros clássicos da literatura ocidental, em diálogo com tradição do regionalismo, desestabilizando-o, consoante já o fizera o seu predecessor Graciliano Ramos. Para desfechar a década, em 1959, virá à tona a já obra clássica “Crônica da Casa Assassinada”, de Lúcio Cardoso. Nesta narrativa fragmentada de cunho introspectivo, sugiro a leitura da decadência do clã do Meneses, como se fosse a mente humana, com todas as vertentes psicanalíticas pautadas no binômio opressão (Demétrio, Ana, Valdo) / transgressão (Nina, Timóteo).
Na década de 1960, mais precisamente em 1964, insurge-se o registro kafkiano “A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector, que se inscreve pela desestabilização leitor, por intermédio da experiência simbólica da antropofagia/autofagia, que se apropriará de outras discursividades, como se nota na influência explícita exercida por Virgínia Woolf, Ayn Rand e, em menor grau, Charles Bukowski. Em 1967, o escritor niteroiense Antonio Callado publicará o romance indianista “Kuarup”, que nos conduzirá aos porões da ditadura cívico-militar, através das mais belas e líricas páginas da História da Literatura Brasileira, apesar de se perder por certo didatismo sectário. Neste mesmo ano, vem a público o livro magistral “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, de Jorge Amado, que, por detrás da irreverência, tendo como pano de fundo a Velha Salvador e sua a cultura afro-brasileira, da culinária ao candomblé, reassume a temática do adultério pelo viés da ressurreição do boêmio e jogador, Vadinho, o que depõe sobre a integridade moral da protagonista, matrimoniada em segundas núpcias com o farmacêutico Teodoro Madureira.
A década de 1970 será representada pela epopeia moderna “A Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna, obra magnífica que fez Carlos Drummond de Andrade afirmar que não era qualquer alma que reproduziria tal feito literário. O processo de composição do discurso ultrapassará a área limítrofe, que permeia História / Ficção, utilizando-se de uma narração que nos possibilitará a figura de uma espécie de Dom Quixote adaptado à realidade nordestina, o pós-pícaro Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, El-Rey do Quinto Império e Profeta da Igreja Católico-Sertaneja. Obra ambiciosa que arrebenta o fio da meada narrativa, quiçá por suas desproporções auto-dialógicas. Em 1975, o escritor Raduan Nassar nos permite a leitura de “Lavoura Arcaica”, esplêndido tirocínio do exame do fluxo de consciência, pelo viés da síntese dos capítulos, que se intercalam entre o narrar-se e os meandros da alma humana.
No início dos anos 1980, o ficcionista Rubem Fonseca nos brindará com a sua obra-máxima, intitulada “A Grande Arte”, que se constitui pelo episódio do misterioso homicídio da prostituta Gisela, em meio a uma trama (pseudo)policialesca. Livro-símbolo, que nos remete ao “Crime e Castigo”, de Dostoiévski, por emoldurar a retratação do subgênero literário denominado romance policial, reinventando-o. Em 1984, a obra literária de âmbito histórico-paródico “Viva o Povo Brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro, abarcará o diálogo desde os registros quinhentistas ao ideário romântico, a narrativa se predispõe a revisitar o Mito do Bom Selvagem, encorpando o protagonismo negro, entronado na figura identitária de Maria da Fé do Recôncavo Baiano. Dois anos depois, a dialética Nélida Piñon publicará “A República dos Sonhos”, vigorosa obra de fôlego que aborda a recolonização imposta pelos mandatários luso-brasileiros, mui ressentidos da abolição da escravatura, sobre os imigrantes europeus recém-chegados, em pleno período do pós-Guerra. No âmago da saga de Madruga, portanto, se interpõe a cultura galega, que se amolda ao contexto social, contribuindo para a formação do povo brasileiro, a partir da Península Ibérica.
Por fim, chegamos a “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum, que adentra o século 21 com chave de ouro, por se tratar de uma obra que transcende o livro referencial “Isaú e Jacó”, de Machado de Assis, que, à primeira vista, acenará ao Leitor como proposição de análise comparativa. Não obstante, o magistral livro de Hatoum propõe um diálogo mais profundo com o mestre fluminense, transportando para a Região Norte o conflito do drama da existência do indivíduo múltiplo, que se ressignifica através do Outro — espelho de si mesmo, de modo a submergir, abismando-se, no pântano da condição humana.